segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Labirinto


O jovem acorda no meio da noite. Outra noite mal dormida, como há tempos. Desde a infância, na verdade. Enfim, ele se levanta, caminha alguns metros e abre a geladeira. A água gelada lhe percorre a garganta, oxigena seu cérebro e assim ele se sente desperto. Mais uns passos e contempla a cidade que dorme (ou não), apoiado contra a rede de proteção da janela – é sonâmbulo, então desde que se mudara para aquele “apertamento” no décimo primeiro andar, não consentiu em lá viver sem proteção nas janelas.

O grande relógio eletrônico que reina sobre os prédios marca 03h25m. Por mais que ele esteja acostumado às noites em claro, está preocupado, pois tem que acordar cedo para trabalhar. Antes era pior. Chegou a virar quase três noites seguidas sem fechar os olhos. Mas isso era no começo. Agora está mais acostumado com o ritmo estranho de vida na Grande Cidade, sem falar nas obrigações que agora se impunham. Ele sempre teve essa mania de querer fazer mil coisas ao mesmo tempo. Quase sempre, acabava não fazendo nenhuma delas: faltava-lhe foco, porque tudo o empolgava.

Pensa nos amigos. Nos poucos bons amigos que tomaram outros rumos e nos poucos bons amigos que fizera. Amigo bom permanece, não fisicamente, mas na certeza. Por isso sabia que eram bons, e que permaneciam. São caracteres concomitantes.

Na família, há de se confessar, pensa com mais naturalidade. É uma presença constante ainda, apesar da distância, pois com esta ele não perde o contato.

Também passou a encarar questões de sentimento como naturais. Se não for assim, não vale a pena.

A vida é uma coisa muito estranha. Muito dessa lição ele aprendeu nesses novos horizontes de pedra em que habitava, ora maiores que os de outrora, ora menores.

E ele gosta muito disso. Na íntegra. Talvez seja sinal de que a lição está sendo aprendida.

E lá se vão três anos na Urbe Paulopolitana. E que esses três anos se multipliquem por vinte, pelo menos, ó jovem!



Nota ao rodapé:

1- Imagem: http://www.braziltour.com/site/br/tour_produtos/lista_cidades.php?id_tour

domingo, 2 de setembro de 2007

Imortal

Sêneca deve ter mandado sua paciência estóica pras cucuias a essas alturas. Faz tempo que eu estou dizendo que ia escrever a seu respeito e nada. Não bateu a inspiração ainda, mas uma hora qualquer vai sair.

Também disse que ia me manifestar sobre os últimos acontecimentos na Faculdade de Direito da USP. Algumas pessoas têm me cobrado um texto (principalmente o Pombo). A essas pessoas, peço calma. Estou levantando informações. Mas, como dizem, temos que escrever quando vem a inspiração, caso contrário ela passa sem ser aproveitada. Hoje é mais uma viagem no (ou sobre) o tempo.

Sexta-feira apresentei, junto com alguns colegas, um seminário sobre Hannah Arendt. Não gosto muito dela. Na verdade, todos esses pensadores que tentam imprimir um esquema muito lógico à História estão fantasiando. Mas é óbvio que algumas coisas que ela diz são interessantes ou, pelo menos, conseguem me remeter a outras coisas instigantes.

Para Arendt, assim como para Jaeger, a grande perturbação do primeiro pensamento grego foi a questão de superar a mortalidade humana através da memória, enquanto conservação e transmissão da futilidade das ações do homem, que tendem a evanescer. A natureza não precisa da memória, pois não distinguimos nela o individual. Só há o coletivo, que brota e se torna perpétuo com a reprodução. Tanto faz ver uma floresta hoje ou daqui cem anos: se a natureza segue seu rumo normal, será uma e mesma coisa, por sua característica de “Ser-para-sempre”. Tudo o que vem a ser, brota e existe é natureza para os gregos (essa é a acepção de Physis, cuja investigação levou aos filósofos Físicos, aqueles preocupados justamente com a cosmogonia e o princípio das coisas).

E a Eternidade... Bom, a Eternidade consiste exatamente naquilo que está fora do tempo. Nós percebemos o tempo por este estar atrelado à mudança e ao movimento. Toda ordem tende ao Caos, de modo que o fluxo que leva à desorganização (no caso das coisas perecíveis) e à conclusão de mais um ciclo (quanto às coisas imortais), quando medidas, acusam a passagem do tempo. Parmênides e Zenão perceberam de forma bastante acurada a dicotomia Tempo-Espaço, e como o caminho da opinião equivocada pode levar ao absurdo a esse respeito. Tudo que é subjacente a tal movimento é o Eterno. Aquilo que não surgiu nem vai acabar, justamente por estar fora do tempo (para este parágrafo, remeto ao post “Matando o Tempo”, infra).




Graças à relação entre movimento e passagem do tempo que se pode traçar um diagrama como esse proposto pela Hannah Arendt (aqui, toscamente desenhado), no qual a linha negra é a imortalidade, as linhas vermelhas são os mortais e, acrescento, o fundo azul claro imóvel é a Eternidade. Essa representação não é tão original como possa parecer. Afinal, o que é um relógio de ponteiro senão a tradução do tempo em movimento?

Voltando ao problema propriamente humano, devo confessar que a partir do momento em que comecei a tentar enxergar a questão da imortalidade sob o ponto de vista grego, fiquei mais tranqüilo. De fato, já que não se pode ter certeza sobre o além-túmulo a ponto de ter uma expectativa otimista (nesse ponto os gregos não chegam ao mesmo patamar do Budismo Theravada, que nega qualquer Metafísica... taí um ótimo tema para um post futuro...), mais sábio é fazer as coisas acontecerem por aqui mesmo. “Fazer sua a beleza”, como diria Aristóteles. Pois os grandes feitos, esses são evidentes por si e levam seu autor, de uma forma ou de outra, à imortalidade.

A imortalidade da memória.


Nota ao Rodapé: Livros a que faço referência: Entre o Passado e o Futuro (Hannah Arendt); Paidéia (Werner Jaeger).

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Ziggurath





A narrativa está em Gênesis, 11. Diante da audácia humana, que pretendeu alcançar os céus por meio de uma torre, Elohim não só pôs abaixo a construção como confundiu as línguas dos habitantes da cidade - Babilônia -, a fim de que eles não conseguissem mais se entender e unir esforços para desafiá-Lo.

A torre de Babel é uma fábula. Alguém poderia dizer que é muito simples interpretar essa estória, já que Babilônia era uma metrópole e, como as metrópoles de hoje, reunia pessoas das mais diversas origens, falantes de idiomas diversos. Bastou isso para que o escriba bíblico condenasse, de forma poética, os zigurates construídos em honra dos deuses dos ímpios.

Etimologicamente, Babel vem de Bab'ilu - "o portal do deus". A transliteração hebraica resultou em Bavél, que por sua vez é uma paranomásia (espécie de trocadilho), envolvendo a raiz hebraica para o verbo "confundir".

Mas eu diria que D's foi demasiado cauteloso, pois não carecia confundir as línguas para que os homens não se entendessem. A incompreensão é algo que está conosco desde sempre.

O que me motiva a dizer isso é constatar que pouco importa o que façamos, o mundo vai continuar a mesma porcaria. As pessoas continuam pensando apenas em si. Agem como se suas ações só dissessem respeito a si mesmas e simplesmente desconsideram o outro (sem imaginar que um dia ele pode se mostrar o Outro - aquele que se voltará contra elas).

É como disse uma amiga minha, com quem conversava sobre minhas angústias: "As pessoas esperam tolerância e compreensão das outras, mas elas mesmas não são tolerantes nem compreensivas".

Talvez eu esteja levando a sério demais algo que eu mesmo considero imutável. O fato de estar incrédulo em relação à maior parte das pessoas me fez perder a paciência com gente. Isso me fez ser ríspido, impaciente e amargo com as pessoas. Não todas as pessoas. Mas, ainda assim, a maioria.

E tudo que eu quero é reerguer a minha torre. Mas apertar a tecla SAP também serve.

Notas ao rodapé: 1- Imagem n°1: Gustave Doré- "Confusão das Línguas"
Imagem n°2: The Brick Testament http://www.thebricktestament.com/

domingo, 8 de julho de 2007

Geopolítica do tráfico

Eu estava preparando um texto sobre Sêneca para esta semana. Mas aí vi uma matéria em algum telejornal por aí que me chamou a atenção. Resolvi escrever sobre o que vi. Sêneca, semana que vem.

A matéria a que me refiro tratava de um livro didático que estaria causando polêmica entre educadores e autoridades. Geografia: sociedade e cotidiano, de Dadá Martins, Francisco Bigotto e Márcio Vitelo, traz dados sobre o espaço habitado pelo homem, como qualquer livro de geografia comum. Deve ser uma obra de qualidade, no mínimo, razoável, já que foi aprovado pelo MEC para uso pelos alunos de Ensino Fundamental da rede pública. No entanto, uma das informações oferecidas pela obra irritou setores determinados da cidade do Rio de Janeiro: um mapa da cidade dividido em zonas de influência das diversas organizações criminosas. Na mesma página, foto de uma ocupação policial no Complexo do Alemão.

Algumas vozes rapidamente se levantaram: César Maia, prefeito do Rio, obviamente preocupado com a imagem de sua cidade, tachou o livro de "panfleto", claramente insinuando que a motivação por trás do livro era muito mais ideológica do que pedagógica. Até aí, nenhuma novidade. No meu modo de ver, estamos sendo bombardeados por ideologia - seja ela qual for - a todo momento.

Professores escolares e pedagogos também contribuíram com a polêmica, ao declarar que o material é potencialmente nocivo aos estudantes, podendo significar uma influência negativa, até mesmo os impelindo a juntar-se aos criminosos (!).

Quantas questões interessantes isso evoca! Minhas opiniões a respeito:

1- Não é um livro de geografia? Geografia não seria a "descrição da Terra"? O subtítulo não se refere a cotidiano e sociedade? Ora, a questão do tráfico É uma realidade efetiva na nossa sociedade e cotidiano. Um esforço consciente para poupar os estudantes disso seria, a meu ver, um ato de alienação.

2- Dizer que o livro influenciaria negativamente os jovens, podendo levá-los a simpatizar com o tráfico e, eventualmente, entrar para seus quadros, é um reducionismo grosseiro. Se um mero livro didático tivesse tal efeito, seria simplesmente por catalisar uma série de fatores que já existem na materialidade do mundo. Vale dizer, a parcela da juventude exposta à criminalidade provavelmente já perdeu sua inocência há algum tempo, estando imersa em um ambiente em que é evidente a participação das organizações criminosas na dinâmica social. Ele não estaria refletindo sobre a leitura de um livro de geografia, como se fosse um observador externo a essa situação.

3- Muito desse pudor em mostrar as coisas como são vem, a meu ver, de uma filosofia do Politicamente Correto que se instalou de forma patológica, quase, desde que o pensamento democrático se reinstalou nesse país. Aqui, opiniões de Direita são demonizadas (qual é a minha posição política é estória pra outro dia), o eufemismo é a figura de linguagem preferida (não há pobres, há economicamente prejudicados). Essa coisa de o brasileiro ser irreverente é, sinceramente, balela.

4- Só para não me prolongar muito, um último ponto. Há que se reconhecer a diversidade de ordens dentro da sociedade. É óbvio que ela existe e os diversos movimentos no seu seio eventualmente conflitam. A normatividade não é uma só. Veja a Idade Média, por exemplo. Essa coisa de Estado onipotente e único editor das normas é uma concepção muito bem arquitetada pela ideologia do Estado Moderno e que, segundo Bobbio, culminou em Hegel e sua noção do Estado como deus terreno e sujeito último da História. Há um pluralismo jurídico que se manifesta nas lacunas deixadas pela atuação estatal. Onde o Estado não se impõe, aí brotará, de alguma forma, uma ordem. Há que se deixar o plano das idéias e ver os fatos.

Por tudo isso que tentei expor brevemente aqui, eu simplesmente não consigo concordar com todo o escândalo feito em torno desse livro. É a realidade. E ela é gritante, não basta queimar um livro didático para ocultá-la e prosseguir na aparente normalidade até que aconteça outro ato de violência para agitar a opinião pública e ser em seguida esquecido. Não sei se consegui me fazer entender, talvez seja tudo meio óbvio, mas é o que penso.

domingo, 1 de julho de 2007

Por que o sapo não lava o pé? Um problema filosófico


Saudações a todos!
Enquanto eu sigo pensando em algo mais sério pra postar semana que vem, reproduzirei aqui uma piada meio velha, mas que ainda acho legal. É uma paródia aos filósofos, que recebi por e-mail faz um tempo já.
Com vocês, a explicação dos diversos pensadores para a questão: Por que o sapo não lava o pé?

Marx: A lavagem do pé, enquanto atividade vital do anfíbio, encontra-se profundamente alterada no panorama capitalista. O sapo, obviamente um proletário, tendo que vender sua força de trabalho para um sistema de produção baseado na detenção da propriedade privada pelas classes dominantes, gasta em atividade produtiva alienada o tempo que deveria ter para si próprio. Em conseqüência, a miséria domina os campos, e o sapo não tem acesso à própria lagoa, que em tempos imemoriais fazia parte do sistema comum de produção.

Engels: isso mesmo.

Foucault: Em primeiro lugar, creio que deveríamos começar a análise do poder a partir de suas extremidades menos visíveis, a partir dos discursos médicos de saúde, por exemplo. Por que deveria o sapo lavar o pé? Se analisarmos os hábitos higiênicos e sanitários da Europa no século XII, veremos que os sapos possuíam uma menor preocupação em relação à higiene do pé – bem como de outras áreas do corpo. Somente com a preocupação burguesa em relação às disciplinas – domesticação do corpo do indivíduo, sem a qual o sistema capitalista jamais seria possível – é que surge a preocupação com a lavagem do pé. Portanto, temos o discurso da lavagem do pé como sinal sintomático da sociedade disciplinar.

Weber: A conduta do sapo só poderá ser compreendida em termos de ação social racional orientada por valores. A crescente racionalização e o desencantamento do mundo provocaram, no pensamento ocidental, uma preocupação excessiva na orientação racional com relação a fins. Eis que, portanto, parece absurdo à maior parte das pessoas o sapo não lavar o pé. Entretanto, é fundamental que seja compreendido que, se o sapo não lava o pé, é porque tal atitude encontra-se perfeitamente coerente com seu sistema valorativo – a vida na lagoa.

Nietzsche: Um espírito astucioso e camuflado, um gosto anfíbio pela dissimulação - herança de povos mediterrâneos, certamente - uma incisividade de espírito ainda não encontrada nas mais ermas redondezas de quaisquer lagoas do mundo dito civilizado. Um animal que, livrando-se de qualquer metafísica, e que, aprimorando seu instinto de realidade, com a dolcezza audaciosa já perdida pelo europeu moderno, nega o ato supremo, o ato cuja negação configura a mais nítida – e difícil – fronteira entre o Sapo e aquele que está por vir, o Além- do-Sapo: a lavagem do pé.

Filmer: Podemos ver que, desde a época de Adão, os sapos têm lavado os pés. Aliás, os seres, em geral, têm lavado os pés à beira da lagoa. Sendo o sapo um descendente do sapo ancestral, é legítimo, obrigatório e salutar que ele lave seus pés todos os dias à beira do lago ou lagoa. Caso contrário, estará incorrendo duplamente em pecado e infração.

Locke: Em primeiro lugar, faz-se mister refutar a tese de Filmer sobre a lavagem bíblica dos pés. Se fosse assim, eu próprio seria obrigado a lavar meus pés na lagoa, o que, sustento, não é o caso. Cada súdito contrata com o Soberano para proteger sua propriedade, e entendo contido nesse ideal o conceito de liberdade. Se o sapo não quer lavar o pé, o Soberano não pode obrigá-lo, tampouco recriminá-lo pelo chulé. E ainda afirmo: caso o Soberano queira, incorrendo em erro, obrigá-lo, o sapo possuirá legítimo direito de resistência contra esta reconhecida injustiça e opressão.

Kant: O sapo age moralmente, pois, ao deixar de lavar seu pé, nada faz além de agir segundo sua lei moral universal apriorística, que prescreve atitudes consoantes com o que o sujeito cognoscente possa querer que se torne uma ação universal.
Nota de Freud: Kant jamais lavou seus pés.

Freud: Um superego exacerbado pode ser a causa da falta de higiene do sapo. Quando analisava o caso de Dora, há vinte anos, pude perceber alguns dos traços deste problema. De fato, em meus numerosos estudos posteriores, pude constatar que a aversão pela limpeza, do mesmo modo que a obsessão por ela, podem constituir-se num desejo de autopunição. A causa disso encontra-se, sem dúvida, na construção do superego a partir das figuras perdidas dos pais, que antes representavam a fonte de todo conteúdo moral do girino.

Jung: O mito do sapo do deserto, presente no imaginário semita, vem a calhar para a compreensão do fenômeno. O inconsciente coletivo do sapo, em outras épocas desenvolvido, guardou em sua composição mais íntima a idéia da seca, da privação, da necessidade. Por isso, mesmo quando colocado frente a uma lagoa, em época de abundância, o sapo não lava o pé.

Kierkegaard: O sapo lavando o pé ou não, o que importa é a existência.

Hegel: podemos observar na lavagem do pé a manifestação da Dialética. Observando a História, constatamos uma evolução gradativa da ignorância absoluta do sapo – em relação à higiene – para uma preocupação maior em relação a esta. Ao longo da evolução do Espírito da História, vemos os sapos se aproximando cada vez mais das lagoas, cada vez mais comprando esponjas e sabões. O que falta agora é, tão somente, lavar o pé, coisa que, quando concluída, representará o fim da História e o ápice do progresso.

Comte: O sapo deve lavar o pé, posto que a higiene é imprescindível. A lavagem do pé deve ser submetida a procedimentos científicos universal e atemporalmente válidos. Só assim poder-se-á obter um conhecimento verdadeiro a respeito.

Schopenhauer: O sapo cujo pé vejo lavar é nada mais que uma representação, um fenômeno, oriundo da ilusão fundamental que é o meu princípio de razão, parte componente do principio individuationis, a que a sabedoria vedanta chamou "véu de Maya". A Vontade, que o velho e grande filósofo de Königsberg chamou de Coisa-em si, e que Platão localizava no mundo das idéias, essa força cega que está por trás de qualquer fenômeno, jamais poderá ser capturada por nós, seres individuados, através do princípio da razão, conforme já demonstrado por mim em uma série de trabalhos, entre os quais o que considero o maior livro de filosofia já escrito no passado, no presente e no futuro: "O mundo como vontade e representação".

Aristóteles. O [sapo] lava de acordo com sua natureza! Se imitasse, estaria fazendo arte . Como [a arte] é digna somente do homem, é forçoso reconhecer que o sapo lava segundo sua natureza de sapo, passando da potência ao ato. O sapo que não lava o pé é o ser que não consegue realizar [essa] transição da potência ao ato.

Platão:

Górgias: Por Zeus, Sócrates, os sapos não lavam os seus pés porque não gostam da água!
Sócrates: Pensemos um pouco, ó Górgias. Tu assumiste, quando há pouco dialogava com Filebo, que o sapo é um ser vivo, correto?
Górgias: Sou forçado a admitir que sim.
Sócrates: Pois bem, e se o sapo é um ser vivo, deve forçosamente fazer parte de uma categoria determinada de seres vivos, posto que estes dividem-se em categorias segundo seu modo de vida e sua forma corporal; os cavalos são diferentes das hidras e estas dos falcões, e assim por diante, correto?
Górgias: Sim, tu estás novamente correto.
Sócrates: A característica dos sapos é a de ser habitante da água e da terra, pois é isso que os antigos queriam dizer quando afirmaram que este animal era anfíbio, como, aliás, Homero e Hesíodo já nos atestam. Tu pensas que seria possível um sapo viver somente no deserto, tendo ele necessidade de duas vidas por natureza,ó Górgias?
Górgias: Jamais ouvi qualquer notícia a respeito.
Sócrates: Pois isto se dá porque os sapos vivem nas lagoas, nos lagos e nas poças, vistos que são animais, pertencem e uma categoria, e esta categoria é dada segundo a característica dos sapos serem anfíbios.
Górgias: É verdade.
Sócrates: precisando da lagoa, ó Górgias meu caro, tu achas que seria o sapo insano o suficiente para não gostar de água?
Górgias: não, não, não, mil vezes não, Ó Sócrates!
Sócrates: Então somos forçados a concluir que o sapo não lava o pé por outro motivo, que não a repulsa à água
Górgias: de acordo

Diógenes, o Cínico: Dane-se o sapo, eu só quero tomar meu sol.

Parmênides de Eléia: Como poderia o sapo lavar os pés, ó deuses, se o movimento não existe?

Heráclito de Éfeso: Quando o sapo lava o pé, nem ele nem o pé são mais os mesmos, pois ambos se modificam na lavagem, devido à impermanência das coisas.

Epicuro: O sapo deve alcançar o prazer, que é o Bem supremo, mas sem excessos. Que lave ou não o pé, decida-se de acordo com a circunstância. O vital é que mantenha a serenidade de espírito e fuja da dor.

Estóicos: O sapo deve lavar seu pé de acordo com as estações do ano. No inverno, mantenha-o sujo, que é de acordo com a natureza. No verão, lave-o delicadamente à beira das fontes, mas sem exageros. E que pare de comer tantas moscas, a comida só serve para o sustento do corpo.

Descartes: nada distingo na lavagem do pé senão figura, movimento e extensão. O sapo é nada mais que um autômato, um mecanismo. Deve lavar seus pés para promover a autoconservação, como um relógio precisa de corda.

Maquiavel: A lavagem do pé deve ser exigida sem rigor excessivo, o que poderia causar ódio ao Príncipe, mas com força tal que traga a este o respeito e o temor dos súditos. Luís da França, ao imperar na Itália, atraído pela ambição dos venezianos, mal agiu ao exigir que os sapos da Lombardia tivessem os pés cortados e os lagos tomados caso não aquiescessem à sua vontade. Como se vê, pagou integralmente o preço de tal crueldade, pois os sapos esquecem mais facilmente um pai assassinado que um pé cortado e uma lagoa confiscada.

Rousseau: Os sapos nascem livres, mas em toda parte coaxam agrilhoados; são presos, é certo, pela própria ganância dos seus semelhantes, que impedem uns aos outros de lavarem os pés à beira da lagoa. Somente com a alienação de cada qual de seu ramo ou touceira de capim, e mesmo de sua própria pessoa, poder-se-á firmar um contrato justo, no qual a liberdade do estado de natureza é substituída pela liberdade civil.

Horkheimer e Adorno: A cultura popular diferencia-se da cultura de massas, filha bastarda da indústria cultural. Para a primeira, a lavagem do pé é algo ritual e sazonal, inerente ao grupamento societário; para a segunda, a ação impetuosa da razão instrumental, em sua irracionalidade galopante, transforma em mercadoria e modismo a lavagem do pé, exterminando antigas tradições e obrigando os sapos a um procedimento diário de higienização.

Gramsci: O sapo, e além dele, todos os sapos, só poderão lavar seus pés a partir do momento em que, devido à ação dos intelectuais orgânicos, uma consciência coletiva principiar a se desenvolver gradativamente na classe batráquia. Consciência de sua importância e função social no modo de produção da vida. Com a guerra de posições - representada pela progressiva formação, através do aparato ideológico da sociedade civil, de consensos favoráveis– serão criadas possibilidades para uma nova hegemonia, dessa vez sob a direção das classes anteriormente subordinadas.

Bobbio: existem três tipos de teoria sobre o sapo não lavar o pé. O primeiro tipo aceita a não-lavagem do pé como natural, nada existindo a reprovar nesse ato. O segundo tipo acredita que ela seja moral ou axiologicamente errada. A terceira espécie limita-se a descrever o fenômeno, procurando uma certa neutralidade.

Notas ao rodapé:
1- Crédito ao Paulo Victor, que foi quem me mandou o e-mail. Desconheço a autoria do texto, mas de qualquer forma achei hilário;
2- Registre-se uma sonora risada ao "gosto anfíbio pela dissimulação"...e viva o "além-do-sapo"! E outra à mensagem de Freud a Kant. O "não, não, não, mil vezes não, Ó Sócrates!" de Górgias também foi grotesco;
3- Registre-se também que eu achei meio injusta a parte do Engels....eu tentaria fazer algo sobre os estágios da coletividade dos sapos...sociedade patriarcal e por aí vai...mas eu estou sem imaginação agora;
4- Se tem uma coisa que aprendi por conta própria na Sanfran foi a abominar o uso errado do "posto que", mas tá valendo...
5- Parmênides vive...só pra não perder o costume.

domingo, 24 de junho de 2007

Loucos de Todo Gênero

Faz algum tempo, mas ainda me lembro vagamente de uma matéria na TV em que o repórter visitou um manicômio. Lá pelas tantas, ele resolveu interpelar um doidinho que conversava com uma árvore:

- Você está conversando com a árvore??
- Sim.
- Não tem medo de acharem que você é louco?

E o jovem respondeu brilhantemente, em tom de confissão:

- Eu seria louco – sussurrou –, se a árvore não me respondesse!

Afinal, o que é ser louco? É algo objetivamente determinável ou é apenas conseqüência de vivermos num mundo em que o desvio é, via de regra, sinal de aberração? Ao contrário do que possa parecer, essa não é uma pergunta que só começou a ser feita no século XX, saindo da boca de gente como Michel Foucault ou Nise da Silveira. Já a Inquisição tinha problemas ao julgar a alegação de que o problema do acusado se devia a uma enfermidade mental, e não à heresia ou a um caso de possessão demoníaca. Pitoresco.

Mas o fato é que, no caso da Inquisição e, mais tarde também no Direito Civil (que muito foi influenciado pelo Direito Canônico) a insanidade mental isentava o réu de responsabilidade: claro, se ele não sabe o que faz, não pode responder por seus atos. Mas se a definição da demência era difícil após séculos de experiência dos inquisidores, não é de espantar que nossos juristas tenham se poupado do trabalho de criterizar a condição do doente mental, preferindo eles lançar mão da duvidosa expressão "loucos de todo gênero", o que era, além de politicamente incorreto, um problema. Às vezes fico pensando como seria um louco em dúvida se essa expressão abarcaria ou não o caso dele...

Se ser louco de fato é uma doença (aqui entendida como algo ruim), então por que tantas vezes testemunhamos a loucura caminhar abraçada com a genialidade de gente como Van Gogh (autor da pintura ao lado) ou Nietzsche?

Aliás, o próprio Nietzsche foi acometido de uma loucura, digamos, coerente com sua postura de vida. Conta-se que, ao sair à rua certo dia, viu um cocheiro bater com a chibata no lombo do cavalo. Teve então uma epifania (deve haver um termo melhor, mas sinceramente desconheço), afugentou o cocheiro e abraçou o animal aos prantos. Após dez anos na mais plácida alienação (diz-se inclusive que esquecera o italiano, língua que dominava bem em razão de ter vivido na Itália por anos!), nosso piloso filósofo teria, conforme reza a lenda, proferido no leito de morte um enigmático "mehr Licht" ("mais luz", em alemão, sua língua materna), significando para alguns - os mais empolgados, ávidos de uma interpretação por trás das singelas palavras - algum tipo de mensagem do pensador para que as pessoas tentassem se tornar mais esclarecidas; enquanto que, para outros, ele estava meramente pedindo para que abrissem as cortinas do quarto onde ele agonizava.

Não por acaso, o mesmo Nietzsche acabou por auxiliar, mesmo que a contragosto, no embasamento teórico, se é que assim se pode dizer, de uma loucura em nível nacional: o também alemão Nazionalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, ou Partido Nazista, para os mais afeitos, que muito deveu à deturpação de idéias nietzscheanas (se tal adjetivo não existe, registre-se o nascimento de uma palavra) tais como a noção de super-homem ou o controverso anti-semitismo que, até agora, eu não sei se ele compartilhava com seu não menos estranho amigo dos primeiros tempos, o compositor Richard Wagner.

De qualquer modo, acho que mais nociva que a loucura é a própria "normalidade". É difícil definir uma pessoa normal. À pergunta "Quem você acredita ser um exemplo de pessoa normal?" dificilmente acreditaria se a maior parte das pessoas dissesse: "eu mesmo". E caso assim fosse, eu certamente ficaria mais interessado em conhecer a parcela minoritária. Preocupar-se com as opiniões e o padrão de comportamento imposto - seja ele qual for, até porque dizer que é doido também já virou moda - não deixa de ser uma coisa meio anormal. Paradoxal. Mas eu não consigo deixar de pensar assim. Comecei o texto com uma anedota, e talvez seja bom fechá-lo com outra, de modo que eu possa exemplificar a conclusão a que quero chegar, após falar brevemente de alguns conceitos e definições da loucura. Um amigo meu (cujo nome não revelarei por razões óbvias: 1) ele falava de problemas pessoais e 2) muitos dos meus amigos acertadamente se julgam ensandecidos) desabafava sobre um caso que o afligia há algum tempo e estava o deixando, de certo modo, transtornado. Ele costumava falar sobre isso comigo porque eu já havia passado por situação parecida.

- Ah, Léo, será que eu estou ficando louco?

- Sinceramente, acho que quem nunca duvidou seriamente de sua própria sanidade mental dificilmente teve uma existência digna e plena de significado, que mereça realmente ser chamada de vida.

A frase foi muito espontânea. Mas parei pra pensar a respeito. E percebi que, louco ou não, eu deveria estar certo.

Afinal, cada louco vive a sua realidade.


Notas ao rodapé: Sobre Nise da Silveira: http://pt.wikipedia.org/wiki/Nise_da_Silveira Na mesma página se encontra a figura que ilustra o post (o quadro de Vincent van Gogh).

ERREI: A frase "mehr Licht" foram as derradeiras palavras de Goethe, não de Nietzsche. Não corrigi no texto mesmo para não estragar sua estrutura.

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Matando o tempo




Estava faltando inspiração nos últimos dias. A combinação da rotina pouco emocionante dos últimos meses com a pressão das obrigações (que sempre vêm todas ao mesmo tempo) é sempre explosiva, resultando num hiato criativo...ou uma pasmaceira intelectual...ou uma calmaria no mar das idéias...(talvez a quantidade de denominações seja a minha criatividade voltando, vamos ver).

O fato é que eu não estava tendo tempo pra fazer nada além do que exigiam minhas obrigações (acadêmicas, em sua maior parte). Vontade enorme de alargar o tempo para que tudo que eu tinha de fazer coubesse na semana. O feriado veio em boa hora...pra conseguir pôr tudo em dia! Por outro lado, estou ansioso por conta de assuntos pessoais e profissionais que quero ver logo definidos. E esse tipo de coisa deixa a gente com vontade de fazer o tempo passar rapidamente. Contraditório. Da escuridão fez-se a luz, afinal. Se o tempo é meu algoz, sobre ele escreverei. A inspiração veio enquanto assistia a uma aula, pra variar. Ouvia, mais por osmose do que por uma vontade consciente de compreensão, o professor falar sobre o preceito aristotélico de que não há criação ex nihil. Explico: os gregos não admitiam a possibilidade de se extrair algo a partir do nada. Se antes não havia nada, eles pensavam, como daí pode surgir alguma coisa?

Essa idéia, creio eu, remonta a Hesíodo, que, como eu disse num post por aí lançou a idéia de causalidade entre os gregos, ou seja, a noção de que cada fenômeno tem sua origem em outro anterior. Tudo isso, em resumo, porque ele escreveu um poema falando sobre as várias gerações dos deuses e a formação do mundo a partir do Caos. Algum tempo mais tarde, os seguidores de certo Parmênides de Eléia (foto ao lado) demonstraram que a mudança e o movimento não podem ser explicados logicamente. Conseqüentemente, não se poderia sustentar uma tese com base em algo que se engendra a partir do zero (a história toda é um pouco mais complicada, tive que pular umas etapas do pensamento pra falar dele, mas outro dia eu volto a falar a respeito com mais calma).

Se as coisas sempre provêm de outras coisas, como fica em relação à primeira de todas as coisas, o princípio a partir do qual todo o resto surgiu? De onde ele veio? Surgiu do nada? Claro que não. Conseqüência? Só existe a eternidade. A percepção da dinâmica do universo deve ser cíclica, não linear, como costuma ser: não há um início ou um fim, apenas o eterno movimento (alguém dirá que, aqui, eu estou misturando Parmênides com Heráclito – a quem ele se opunha filosoficamente – mas, como também pretendo falar um dia, eles são muito mais harmônicos entre si do que parece).

Mas há o outro lado também. Aquele das religiões monoteístas; a visão segundo a qual o universo foi criado do nada. O defensor mais consciente dessa idéia, ao que me parece, é um pensador judeu medieval chamado Moshé ben Maymon – ou Maimônides, o Rambam. Sua interpretação da Torá, conhecida como Guia dos Perplexos, dialoga com Santo Agostinho e é possível de se harmonizar com os postulados da ciência moderna. Vamos ao argumento, antes que eu me empolgue e esqueça o assunto: À crítica de que um universo inteiro ser criado do zero é uma proposição ilógica, vez que o que compõe esse mundão de Deus deve ter tido origem em algo que havia antes; o Rambam responde, muito inteligentemente, que o universo não foi criado num momento determinado no tempo pelo simples motivo de que o próprio tempo surgiu com a criação. Genial. Antes não havia processo. Não havia causalidade, afinal não havia fenômenos para originarem outros fenômenos. O tempo nada mais é do que a consequência natural de as coisas estarem regidas pela lei da causalidade, obedecendo a uma ordem de sucessão. Em sentido psicológico, é a forma como percebemos esse fluxo dos acontecimentos naturais. Antes da criação (se é que se pode falar de algum momento antes da criação, nesse raciocínio), só se pode falar em tempo como algo imaginário, psicológico. Não havia espaço também – ao se formar o universo, o espaço surge a partir do referencial entre suas partes, ao mesmo tempo em que o tamanho total do universo permanece o mesmo: nenhum, já que fora do universo não há referencial para definir seu espaço.
Parecendo Parmênides de novo? É, eu sei. Tive até uma iluminação agora escrevendo isso (daquelas iluminações que só Parmênides proporciona): se o universo não tem tamanho, não se expandiu! O tal ponto ínfimo onde se concentrava toda a energia e matéria logo “antes” do Big Bang teria se diferenciado dentro dele mesmo, e esse espaço sideral enorme que a gente vê aí, mensurável apenas em anos-luz, fica fácil de entender quando se leva em conta os argumentos contra o movimento elaborados por Zenão, discípulo de Parmênides (você se lembra dos tais argumentos? A historinha de Aquiles e a tartaruga... Refresque sua memória na nota de rodapé no fim do texto), que postulam, entre outras coisas, a possibilidade de se dividir o espaço em infinitas partes. Em suma: incrível como no fim tantos argumentos a favor de visões distintas se tocam e se complementam.

Voltando ao Maimônides. Eu disse antes que suas idéias não contradizem o atual estágio do desenvolvimento científico. Pensamento assim sólido não poderá, obviamente, ser derrubado facilmente. Quer ver? Então veja:

1- Antes do Big Bang, a matéria do universo estava concentrada no ponto único, dito singularidade, cujo volume era zero (tive um déjà vu...nada a ver dizer isso, mas achei interessante). Quebrei o raciocínio. VOLTANDO: Se o volume era zero, a densidade era infinita (d= m/v), logo é perfeitamente compreensível a singularidade dar origem a tudo que está aí (eu, você, Júpiter, computador, cachorro, vácuo, Antares, China – com todo mundo que está lá dentro, inclusive – , cometa Halley, papagaio e por aí vai...).

2- Minha avó já dizia (e Einstein também): em tal condição limite, a variável tempo deve ser tratada como um número imaginário.

Vou parar por aqui. Estou começando a me achar engraçado, e daí a falar bobagem não carece muito tempo. Não cheguei a nenhuma conclusão, como de costume. Mero experimentalismo. Nada mais que livre associação. Mas estou feliz: foi bom pra passar o tempo.

Notas ao rodapé:
1- O argumento de Aquiles e a Tartaruga: http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/cantor/aquilestartaruga.htm .
2- http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx? Tópico da comunidade “Maimonides” no orkut. Boa parte da inspiração veio daí.
3- Sobre Parmênides: http://pt.wikipedia.org/wiki/Parmênides .
4- A passagem do tempo e a segunda lei da termodinâmica (?) MUITO INTERESSANTE: http://www.fisicabrasil.hpg.ig.com.br/tempo_entropia.html .
5- Imagens ex: http://pt.wikipedia.org/wiki/Tempo ; http://www.educ.fc.ul.pt/ ; http://pt.wikipedia.org/wiki/Parmênides . Irônico saber que o Einstein mostrou a língua achando que os paparazzi da época deixariam de persegui-lo. Virou sua foto mais conhecida.
6- Não, eu ainda sou agnóstico.

domingo, 3 de junho de 2007

Sem inspiração para escrever?

Você fala, fala e não diz nada?

Sempre com a sensação de que há algo a ser dito, mas você nunca sabe o que é?

.
.
.

Você, assim como eu, está tendo um hiato criativo. É isso que a rotina e a previsibilidade fazem com você! Quando a pasmaceira intelectual acabar, escrevo mais a respeito.

P.S.: Se alguém aí quiser me ajudar a sair da rotina e da previsibilidade...

terça-feira, 17 de abril de 2007

O diálogo dos sofistas modernos

Uma aula chata de direito penal serviu de mote pra que eu começasse a discutir valores e moral com um colega...eis a brilhante conclusão a que chegamos:


Leonardo: É...parece que nós estamos ficando mesmo cada vez mais relativistas, Paolo...
Paulo Victor: Ah, Lío...depende...

sexta-feira, 13 de abril de 2007

"É a vida..." ?!?




Pessoas são muito complicadas. Pensam no que os outros vão pensar a respeito de suas atitudes, ficam tentando demonstrar a todos que estão sempre certas, além de se pautar em termos de passado e futuro, o que é um absurdo se pararmos para pensar que nem um nem outro existem na realidade.

Assim, muitas vezes vão deixar de fazer o que querem e tentar impor sua visão ao outro. Tentam manter uma pose, mas é impossível desempenhar um papel por muito tempo. Invariavelmente acabam (se) decepcionando.

É isso aí. Como já nos ensinavam os Antigos, o Outro se voltará contra nós, caso não O aceitemos.

E depois disso tudo, ainda vai ter alguém para olhar e suspirar: “É a vida...”

A vida? A vida não é coisa alguma. Simplesmente aparenta ser alguma coisa pra você. A vida em si não existe, portanto creio que não devemos perder nosso tempo pensando nela. Só o fato de estar vivo já é algo grandioso demais para se perder tempo fazendo formulações a respeito.

No momento estou fisicamente cansado, então outro dia eu elaboro melhor meu pensamento. Só insisti em escrever agora porque finalmente tenho a impressão de conseguir superar essas preocupações. Estou me tornando alguém extremamente simples no modo de encarar a “vida” e as pessoas. E, conseqüentemente, parece que quanto mais simples me torno, melhor passo a enxergar o quão risíveis são as complicações das pessoas. As (complicações e pessoas) que me restam, inclusive.

Notas ao rodapé: Imagens: 1- Bela Lugosi’s Dead (Bauhaus) Ex http://www.youtube.com/watch?v=zq7xyjU-jsU ... não há um porquê especial para ter escolhido esta imagem para este post, apenas gosto dela...aliás, o que mais percebo ultimamente é que muita coisa não tem nenhum tipo de motivo. E buscar um motivo onde não há gera tremenda angústia.

2- Dionísio, deus grego a quem fiz referência no texto. Seu perfil é mais oriental do que propriamente grego, daí ele ser o Outro, isto é, o diferente. Vale lembrar que só se pode ter consciência de si mesmo a partir do momento em que se tem consciência da existência do Outro, exterior a si mesmo (é o tipo de raciocínio em que um é pelo outro). Além do mais, ele tem uma imagem desencanada, na exata medida do que quero expressar, haha. Ex http://www.helderdarocha.com.br/blog/2004/12/dionsio-o-deus-persa-da-guerra_03.html

quinta-feira, 5 de abril de 2007

Escrito nas estrelas




Sorte de hoje: Sua mente é criativa, original e perspicaz



Obrigado por alimentar meu ego sedento de areté!


Não sei o porquê, mas astrologia tem sido um tema recorrente nas minhas conversas nos últimos dias.
Seja nos papos sobre o horóscopo irreverente do Chantecler na piauí, seja discutindo a crença em Destino ou algo do tipo (coisa em que não acredito, diga-se de passagem)...O inusitado chega ao ponto de até um professor indagar meu signo (e fazer uma cara enigmaticamente feia ao saber que sou de Leão).
Esse tipo de discussão encerra um grande problema pra mim. Por um lado, tento manter uma visão holística do mundo, com todos os seus componentes interligados e interagindo, o que admite de forma muito natural (embora, talvez, não racional) a influência dos astros sobre a vida da gente. Só que é difícil conciliar isso com minha concepção de que somos nós quem devemos construir nosso Destino, e que este é fruto de nossas escolhas. Destino é uma idéia platônica demais para ser engolida numa boa. (Idéia platônica chega a ser um pleonasmo pior do que ar poluído...hum, tá bom, foi apenas uma observação pouco pertinente).
Até reconheço que o perfil traçado pela astrologia para cada signo costuma coincidir (sem juízos de valor em relação ao verbo utilizado, okay?) com o perfil das pessoas. Mas daí eu lembro daquela sacada genial dum grande amigo meu: “Humpf...horóscopo...como se só existissem doze tipos de pessoas...”. Tenho que reconhecer a força do argumento dele. Mas talvez haja um meio termo que nos possibilite conciliar as opiniões. Quem sabe se nós considerarmos os 12 signos como tipos puros...tipos ideais mesmo, ou como diria um outro professor, “um instrumental tecnológico que nos serve de ferramental para analisar as situações reais” (juristas e suas teorias para complicar o simples – custava simplesmente dizer que era uma abstração a partir da realidade? Acho que ainda assim está meio complicado, mas voltando...) possamos dizer que existem até mesmo tipos secundários, amálgamas da tipologia padrão.
Nisso eu me encaixo melhor. Tô ali, no último dia de Leão. Quase nasci sob Virgem. Mais pra lá do que pra cá. Saiu isso...alguém que adora ser notado, como típico leonino, mas que, paradoxalmente, é introvertido e fica tímido nas situações em que é notado – como um bom virginiano – . Ora, nada mais difícil de harmonizar do que esses dois caracteres tão discrepantes da minha personalidade, e que tantos problemas costumam me trazer.
Mas essa realidade, com a qual eu admito concordar em parte, só diz respeito ao psicológico dos indivíduos de determinado signo. E quanto às previsões? Será que realmente os acontecimentos estão dispostos numa ordem legível nas estrelas – coisa que eu insisto em não acreditar – ou a sorte não passa mesmo de uma grande roda em que um dia você está por cima e, no outro, está na pior (idéia presente tanto nos Carmina Burana quanto em qualquer música de corno por aí - sem ofensa aos cornos, é claro)?
O que torna uma ciência exata não é o fato de ela nunca falhar, e sim conseguir estabelecer uma margem de erro para seus prognósticos. Imagino que, no que toca à astrologia, apontar as próprias possibilidades de falhar está fora de questão, pois poderia ser um recurso à vagueza para impedir que as previsões fossem refutadas.
No fim das contas, pode ser que Shakespeare – aquele mesmo, o que entendeu tão bem a alma das pessoas de qualquer tempo sem precisar verificar o alinhamento dos planetas para tal – tenha mesmo razão quando escreveu, há não tão exatos quatrocentos anos, que há muito mais entre o céu e a terra do que supõe nossa filosofia. Por mais que se pense a respeito, qualquer conclusão não vai passar disso: suposição.

Notas ao rodapé:
1- Como se sabe, a sorte de hoje reproduzida no começo do texto saiu no famigerado horóscopo do orkut. Um dia falarei mais sobre ele.

sábado, 31 de março de 2007

Senta que lá vai história...

Que coisa mais piegas o meu último post!

Hoje resolvi pôr aqui um texto, fruto de uma pequena pesquisa minha sobre as epopéias de Homero. Boa leitura xD

Aliás, cabe dizer que a leitura desse texto, a meu ver, se fecha num ciclo com o texto do Thiago Leal (A Virtude e suas Nuanças em Homero e Hesíodo), constante do blog dele (Altívago Nefelibata- link ao lado)


Algumas questões sobre a Ilíada e a Odisséia
1.0- Introdução
2.0- Ilíada, Odisséia e Homero
3.0- Impacto da epopéia homérica sobre a civilização grega
3.1- Aspecto educacional de Homero
3.2- Religião e filosofia
4.0- Bibliografia

1.0 – Introdução

A proposta deste texto é analisar a Ilíada e a Odisséia, obras cuja autoria é convencionalmente atribuída ao poeta grego Homero, considerando os poemas sob quatro perspectivas, quais sejam a literária, a filosófica, a cultural e a histórica. O reconhecimento destes pontos de vista não significa que eles serão tratados como realidades estanques, uma vez que a pretensão, ao longo do texto, é tratar das quatro esferas de forma interligada, sem uma separação formal das perspectivas, que são postas em evidência, aqui, apenas como advertência quanto aos aspectos que eu tinha como relevantes ao desenvolver o tema.

Não é meu objetivo fazer um resumo dos eventos narrados nos poemas. Quando fiz referência ao enredo, foi tão somente no intuito de tornar mais claro algum ponto do raciocínio. O procedimento por mim considerado a melhor forma de abordar estas obras foi trazer à discussão alguns problemas decorrentes do estudo do legado de Homero. É justamente a questão da existência histórica deste autor, em conjunto com considerações de ordem literária, que inicia nosso estudo, em 2.0. Em seguida, terá lugar uma série de considerações sobre a importância da epopéia homérica para a formação cultural do povo grego, já inseridas minhas conclusões pessoais (3.0). Por fim, segue o detalhamento da bibliografia, tanto aquela em que me apoiei, quanto aquela que creio ser de interesse para nosso tema (4.0).

A abordagem que fiz não é, de forma alguma, exaustiva. Apoia-se nos principais pontos discutidos pelo grupo sobre as epopéias homéricas e em algumas obras a que tive acesso recentemente, nomeadamente as epopéias propriamente ditas, além dos comentários de Werner Jaeger e da introdução ao volume dos filósofos pré-socráticos, da coleção Os Pensadores, que predominou na primeira discussão sobre o assunto. Obviamente, muitos temas importantes ficaram de fora dessa breve dissertação, alguns justamente em razão do caráter sumário da exposição, outros pelo domínio ainda incipiente sobre o assunto. Algumas questões foram tratadas mais de uma vez, em partes diversas do texto, conforme a necessidade de abordá-las a partir de problemas de diferentes naturezas.

2.0 – Problema histórico de Homero. Aspectos gerais da epopéia

Principiei 1.0 afirmando que Homero é considerado autor dos poemas por convenção. De fato, essa expressão é a que julguei mais apropriada, já que afirmar a existência de um único autor historicamente determinado encerra sérios questionamentos no que se refere à possibilidade de se conhecer a Grécia primitiva por meio dos poemas e à questão do estilo bastante diverso de uma obra em relação à outra. Não pretendo enumerar aqui de forma exaustiva às muitas teorias já formuladas a esse respeito[1], e sim apresentar as fontes de tanto questionamento, ou seja, a problemática em si. Principiarei pela segunda questão, pois esta oferece maiores subsídios para o entendimento da primeira.

É amplamente conhecida a história narrada nos poemas da Ilíada e Odisséia. O primeiro poema é ambientado no cerco dos aqueus a Tróia, mas a guerra é apenas cenário para a ação principal. Esta se concentra em dois problemas principais. O primeiro é a ofensa sofrida por Aquiles, ao ter a posse da cativa Criseida (que ele recebera de seus companheiros gregos em razão de suas virtudes em combate) tomada pelo autoritário líder grego Agamemnon. O segundo grande tema é o combate entre Aquiles e o herói dos troianos, Heitor. Também a Odisséia tem dois planos de ação. Além de nos contar das aventuras de Odisseu, um dos heróis gregos naquela guerra, em retorno ao seu reino de Ítaca, mostra a evolução espiritual de seu filho Telêmaco, em busca pelo pai perdido e por uma solução para a afronta doméstica, representada pelos pretendentes de sua mãe. A autoria de ambos os poemas é atribuída a Homero, embora se saiba da existência de versões diversas do texto, até a edição de Aristarco de Samotrácia (Alexandria, 150 a.C.) que, baseada na forma mais ou menos constante que se tem desde pelo menos 550 a.C., é considerada como definitiva.

O estilo narrativo é muito diferente de um texto para o outro. O poeta da Ilíada não traz considerações mais profundas sobre a formação e natureza de suas personagens. Elas agem de modo a formar uma idealização (de cujo fundamento pretendo tratar adiante) de uma sociedade de guerreiros, os quais sofrem a determinação constante da ação dos deuses em seus destinos. A vida bruta do guerreiro e a busca da virtude cavalheiresca e sua conseqüente honra como imperativo social mostram uma visão de mundo que poderíamos denominar, de certa forma, naturalista.

A celebração dessa virtude cavalheiresca, aliás, é o próprio intuito do poema. Essa virtude ou areté, próxima ao ideal dos cavaleiros medievais, deveria ser constantemente provada mediante os feitos heróicos dos nobres (aristoi, detentores legítimos da virtude), tanto em tempos de guerra quanto de paz, principalmente através das aristéias, combates singulares entre aristocratas. A Ilíada em seu conjunto é a narrativa da grande aristéia da guerra de Tróia, o combate entre Aquiles e Heitor[2]. À questão da areté retornaremos mais adiante.

O fato de concentrar-se nesta aristéia, como o evento mais intenso da guerra, evidencia um dos aspectos da genialidade das epopéias homéricas. Em lugar de proceder com uma exaustiva narração de todos os eventos da guerra, ou mesmo da vida do próprio Aquiles, o poeta concentra-se no drama de maior relevo, mencionando os acontecimentos anteriores e posteriores apenas naquilo em que são relevantes para o entendimento dos eventos que têm lugar no tempo em que se passa a ação[3]. Jaeger afirma, com acerto, que qualquer tentativa de estender a ação até a morte de Aquiles significa ignorar a intenção artística do poema, pois a certeza da morte não é a continuação natural do enredo para o futuro, e sim o motivo maior do engrandecimento do herói no presente.

Por sua vez, a Odisséia encerra uma concepção mais realista de mundo, já que o foco está na descrição de personagens nobres (inclusive em seu aspecto subjetivo), vistas de modo mais humanizado, menos perfeito. As personagens são bastante verossímeis, sendo possível partilhar de seus pensamentos e daquilo que as atormentam, enquanto que é virtualmente impossível imaginar as personagens da Ilíada fora de combate. A Odisséia, tal como está, não poderia ser concebida nos mesmos moldes da narrativa da Ilíada, por estar centrada no cenário doméstico. Esta diferente perspectiva levou muitos autores a julgar ser o autor da Odisséia alguém de convívio mais próximo com o elemento nobre de seu tempo. Se na Ilíada temos a nobreza beirando a perfeição, a Odisséia apresenta o caráter como algo não definitivamente ligado às condições de nascimento, muito embora ainda seja natural que se espere uma conduta cordial dos nobres, condizente com seu ideal de areté. Isto fica claro com o comportamento agressivo dos pretendentes de Penélope, e a incompatibilidade de tal atitude com sua posição social. Diante de tudo isso, é natural que areté caminhe, ainda que não de forma definitiva, para o sentido atual de virtude, que considera seu aspecto moral.

Embora também neste poema esteja presente a influência do elemento sobrenatural / divino nas ações do homem, esta se dá mais sob a forma de inspiração divina do que ação direta de um deus no sentido de modificar o curso dos acontecimentos. Talvez o maior exemplo desta afirmação seja a Telemaquia, parte inicial da Odisséia, em que Telêmaco, filho de Odisseu e príncipe de Ítaca, recebe aconselhamento por parte da deusa Palas Atena acerca do modo como deveria agir na ausência de seu pai. A intervenção da deusa é de suma importância, pois servirá para transformar o jovem então delicado e inexperiente em útil aliado de seu pai no restabelecimento da ordem em sua casa, quando da chegada deste. A evolução do comportamento de Telêmaco é indiscutivelmente direcionada para este clímax.

A análise psicológica não é muito desenvolvida na Ilíada, em favor da supervalorização e enaltecimento de todo tipo de qualidade. A discrepância entre as perspectivas é notável até mesmo na adjetivação usada para as personagens, que serve para destacar a virtude guerreira e propiciar uma aproximação psicológica com a personagem, na Ilíada e Odisséia, respectivamente[4] [5].

Diante disso, é fácil entender o problema histórico (embora não seja fácil resolvê-lo). A sociedade instável de nobres guerreiros apresentada pela Ilíada é compatível com o período das migrações das tribos de aqueus, em seu processo de incursão no território grego (séculos XX a XII a.C.). Tal data é compatível com o apogeu e desaparecimento do sítio de Tróia VI, tido como o período mais esplendoroso do desenvolvimento dessa cidade (1900 a 1240 a.C.), conforme atestaram as escavações conduzidas pelo arqueólogo alemão Heinrich Schliemann[6]. No entanto, a Odisséia não pode ser fruto de tal época, uma vez que a sociedade estável e politicamente bem definida que o poema apresenta simplesmente não poderia existir no período citado. Jaeger situa a criação da Odisséia como anterior a Hesíodo, e a racionalidade expressa no poema seria reflexo de seu surgimento na tradição jônica, dentro da qual, pouco mais tarde, floresceriam os primeiros filósofos físicos.

Não se pode atribuir a autoria de ambos os poemas a um único indivíduo, nem situá-los em um único período. Porém, considerar a totalidade das obras como uma unidade é importante quando se trata de analisar a significação de seu legado sobre a formação cultural helênica, como veremos a seguir.


3.0 – Impacto da epopéia homérica sobre a civilização grega


3.1 – Aspecto educacional de Homero

As narrativas homéricas desempenharam papel importante em relação ao desenvolvimento cultural dos gregos, uma vez que a poesia era considerada veículo educador por excelência, não havendo dissociação entre o valor estético da arte e o seu conteúdo ético. Ambos encontravam-se intimamente ligados, tendo importância profunda para o valor da obra. A idéia de autonomia estética da arte, que permite a apreciação dos poemas pela beleza de sua forma, dispensando-se reflexões sobre seu conteúdo, teria sido uma concepção da retórica e, posteriormente, do pensamento cristão, que assim teria permitido a sobrevivência dos poemas, agora convertidos em manifestação da “mitologia”. Ou seja, poderiam ser admirados simplesmente por sua beleza, desconsiderando-se a profundidade da mensagem enquanto expressão de religião pagã. Pretendo, daqui em diante, apresentar esse conteúdo de que as epopéias homéricas seriam portadoras.

Os gregos buscaram encontrar, em tudo quanto fosse objeto de sua reflexão, as leis gerais que regem os diversos fenômenos. Isso não poderia deixar de ocorrer também em relação à idéia de homem elaborada por eles. Pensar o ser humano conduziu o grego à concepção de indivíduo, em contraposição ao cenário geral da antigüidade oriental, na qual os homens representam uma massa rígida, curvada perante um Estado onipotente. Essa constatação é crucial para o entendimento da evolução que a Grécia representou em áreas tais como a Política, com o advento da idéia de democracia; e a Filosofia, em seu desenvolvimento desde os problemas da natureza até os problemas do ser humano. A noção de indivíduo, elaborada nesses moldes, não significou a consideração de um “eu” subjetivo, e sim a construção de um tipo ideal de ser humano.

Homero é quem vai estabelecer as qualidades desse homem idealizado, sendo a característica central dessa construção a areté, tal como a apresentamos em 2.0. A areté não é um conceito que se encerra em si mesmo. A conseqüência de seu reconhecimento é que assume valor importantíssimo, pois significa a atribuição de honra ao indivíduo virtuoso ou, no dizer de Aristóteles, a honra é o prêmio pago à virtude. Ao contrário da formulação posterior da idéia de virtude, que geralmente prescinde do reconhecimento externo, a honra em Homero é a retribuição natural à conduta virtuosa, de modo que não honrar o guerreiro virtuoso significa não reconhecer nele a areté. No cenário da guerra, a honraria se dá pela oferta do espólio da batalha ao herói. Somente assim podemos compreender o fato de Aquiles retirar-se da batalha após ter Criseida, que lhe fora dada pelos gregos como prêmio por suas qualidades de guerreiro, tomada por Agamemnon. A consideração conjunta do significado da areté e a clara reprovação do poeta à atitude de Agamemnon ajudam a perceber na reação de Aquiles o repúdio à injustiça sofrida, em vez de um mero exemplo de egoísmo ou narcisismo.

No contexto da Grécia arcaica, a nobreza, apoiada no tripé tradição / vida sedentária / propriedade, é a única classe onde é possível se conceber uma transmissão consciente das formas de vida, com o fim de propiciar a suas gerações atingir o ideal de homem apresentado. Deve-se a isso a posição central dos nobres na ação, bem como a ligação indissociável entre areté e nobreza. Também é notável o papel diferenciado da mulher, que não é vista pelo aspecto da utilidade, como fará Hesíodo, nem como mera mãe dos filhos legítimos, como será no seio da burguesia posterior. A importância feminina está, mais explicitamente na Odisséia, em seu papel de mãe de uma geração ilustre, tanto pela consciência da relação entre areté e nobreza (esta, como já vimos, só se justifica pela constante demonstração daquela), quanto por ser a mulher a responsável por desempenhar, em razão do cenário doméstico, a manutenção das tradições e do modo de ser da classe. Seus protótipos são Penélope, Nausícaa e Atena.

Até agora tenho afirmado ser a poesia forma usada eficazmente pelos gregos com a intenção educadora. A eleição da arte como veículo de expressão de valores éticos se deve ao fato de ela possuir um poder ilimitado de conversão espiritual – psicagogia – , estando dotada simultaneamente de duas modalidades de ação espiritual: validade universal e plenitude imediata e viva. Assim, supera em amplitude a vida real e a reflexão filosófica, pois esta é universal por penetrar na essência das coisas, mas seu alcance é restringido pelos diversos níveis de vivência pessoal; enquanto aquela possui a plenitude da experiência, desprovida, porém, de sentido universal. Tais características não são exclusivas dos gregos, nem aplicáveis à arte de todos os tempos e culturas. Mas é entre os helenos que essa observação atinge maior validade.

Além do alcance universal da arte, a epopéia homérica se vale, em sua ação educadora, da força do exemplo. O exemplo é o recurso dos mais antigos e eficazes para se transmitir alguma lição. O discurso de Fênix a Aquiles, acerca da nocividade da cólera, menciona o exemplo de Meléagro. Na Odisséia, Atena inspira Telêmaco com a alusão à vingança de Orestes contra Egisto, assassino de seu pai.

Em última análise, Ilíada e Odisséia apresentam, nas figuras de Aquiles e Telêmaco, dois protótipos antitéticos da educação. Aquiles entrega-se à paixão da fúria, apesar dos sábios conselhos de Fênix, amigo fiel e experiente, no sentido de não resistir de forma tão impetuosa à reaproximação com os aqueus. Por sua vez, Telêmaco representa uma demonstração de como um jovem, guiado para um fim maior, pode atingir sua meta através de uma postura que aceita com docilidade os ensinamentos da experiência.


3.2 – Religião e filosofia

Já tive a oportunidade de opor a noção de homem dos gregos àquela dos povos da dita antigüidade oriental. Retorno a ela agora, a fim de mostrar o abismo que separa as duas culturas, sob o aspecto religioso. Em oposição ao já decantado antropocentrismo grego, há, entre os orientais, a ordenação teomórfica do mundo. Em ambos os sistemas, há a intervenção divina nos eventos terrenos. Porém, a idéia da individualidade do homem aduz, entre os gregos, à necessidade de decompor a observação da realidade segundo os desígnios divinos e o efeito destes sobre os homens. É uma postura na qual a consideração psicológica e a metafísica são organicamente complementares, nunca excludentes. Deste ponto de vista, as epopéias homéricas se distinguem não apenas de seus similares orientais, mas também da epopéia medieval, em que impera a ótica estritamente subjetiva.

Isto merece uma reflexão profunda, a fim de que se possa perceber que a concepção poética de Homero leva necessariamente a uma análise holística do mundo, ou seja, a coexistência de um plano divino e um humano implica a consideração dos acontecimentos de uma perspectiva absoluta, sempre. Apenas o poeta, condutor da narrativa, percebe e transmite a natureza dúplice da ação. Ao tratar do problema do homem em sua significação absoluta e em conexão com as normas que governam o próprio universo, a épica grega assume um caráter muito mais total, objetivo e profundo, que só se repetirá, segundo Jaeger, em Dante Alighieri. Desnecessário ressaltar a importância de semelhante visão de conjunto, não apenas para a religião, mas para a própria evolução do pensamento.

O Olimpo de Homero é um reino de luz. Humanizados em forma e atitude, os deuses ficam mais próximos do homem, racionalizando a religião e excluindo do culto as formas monstruosas e as práticas de feitiçaria, que passam a aparecer na tradição apenas como exemplo de desvio patológico daquela que deveria ser a verdadeira expressão da religiosidade[7]. Se uma pluralidade de divindades dispostas a fazer prevalecer sua vontade no universo poderia significar uma desordem, a presença de um Zeus soberano, detentor da palavra final no conselho dos deuses, garante a manutenção da ordem cósmica. Isto é muito relevante para nós. Atribuir a causa das coisas, em última instância, a Zeus foi a forma encontrada pelo poeta para resolver a delicada exigência moral e religiosa de conciliar a multiplicidade de deuses com a concepção de um comando ordenado e unitário do mundo. Isto vai dar, em seguida, na noção de arché dos pré-socráticos, como ordem em que se funda todas as coisas, aqui representada pelo papel de Zeus.

4.0 – Bibliografia


ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Edipro. [s.d.]

BUTLER, Samuel (adap.). The Iliad of Homer and The Odyssey. Great books of the western world. Encyclopaedia Britannica. 1952.

CERAM, C.W. Deuses, Túmulos e Sábios: o romance da arqueologia. São Paulo. Melhoramentos. 1991.

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo. Martins Fontes. 1995.

PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica I: Grécia. Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian. 2003.

PLATÃO. Fedro, in Plato. Great books of the western world. Encyclopaedia Britannica. 1952.

SOUZA, José Cavalcante de (org.). Os pré-socráticos: vida e obra. Os Pensadores. São Paulo. Nova Cultural. 1999
Notas:

[1] A respeito, leia-se a nota bibliográfica sobre Homero, constante da tradução das epopéias por Samuel Butler: “Homer is not a man known to have existed, to whom the authorship of the Iliad and Odyssey is imputed. Homer is the author of the Homeric poems, a hypothesis constructed to account for their existence and quality. There were several ‘lives of Homer’ in antiquity. Their date is uncertain, but the Homer they present is certainly a figure of romance and conjecture. (...) Extrinsic evidence, then, does not reveal an Iliad or Odyssey, written poems, in anything like their present form, before 550 B.C. However, intrinsic evidence convinces scholars that such a date was a late stage in the history of ‘Homeric’ poetry. To reconstruct that history has always been the Homeric problem. This reconstruction, when made by argument from the text of the present poems, has sometimes seemed to involve a denial of their artistic unity. Certain scholars have seen the epics as only imperfectly unified, resulting from accretion to an imagined short original or from a joining of several remembered songs. Further, the poems have been held to be neither of the same period, nor by the same author; Samuel Butler contended on this last point that the Odyssey was written by a woman.”

[2] A narrativa inteira, aliás, está concentrada nas aristéias dos diversos heróis aqueus e troianos, já que estas oferecem elementos mais ricos e dignos da nobreza do que os grandes combates de multidões, os quais só fazem sentido neste contexto com a atuação notável dos heróis no meio das massas.

[3] É o caso da referência feita à motivação da guerra (o rapto de Helena) e do célebre episódio do cavalo de Tróia, que não se encontra na Ilíada, mas no canto VIII da Odisséia, cantado por um bardo, em forma de flashback. Também a referência prévia à morte de Aquiles em combate. O fato de o herói permanecer no campo de batalha, mesmo tendo consciência de que nele encontrará o seu fim, evidencia um aspecto importante da areté.
[4] Quanto à adjetivação, cabe lembrar o largo uso, na Ilíada, de epítetos junto aos nomes dos heróis, destacando suas qualidades guerreiras, físicas e nobres, enquanto que seu uso na Odisséia serve à tradução do que se passa na psique. Um exemplo fortíssimo é a caracterização da mulher. Os comentadores antigos apontam a avaliação da cativa Criseida por Agamemnon como resumidora de todo o conteúdo da areté feminina (boa presença, estatura, prudência e linhagem), enquanto a Odisséia realça o temperamento e virtudes domésticas de Penélope.

[5] Quero fazer uma observação, no sentido de que não pretendo afirmar a ausência de análise psicológica na Ilíada, apenas que, na Odisséia, ela é mais elaborada. Tal ressalva é necessária no sentido de evitar a impressão de contradição em relação às partes finais do presente texto.

[6] A respeito de Schliemann, v. C.W. Ceram, Deuses, Túmulos e Sábios.
[7] Lembro-me de ter usado o mito de Medéia como exemplo dessa tendência, ao que se opôs ser esse exemplo muito discutível. Sinceramente, faltam-me informações a respeito.

sexta-feira, 30 de março de 2007

É como uma irmã menor que voltou a bater à minha porta

Solidão, bem-vinda de volta!

Com todas as sensações que vêm contigo...o desajuste; as reflexões; os arrependimentos; o aprendizado; a contemplação; o tédio; a observação; a saudade; a tristeza; a paz; a alegria também; a insônia; a preguiça; o sossego ou o desassossego...

Quem sabe se numa dessas eu não acabe esbarrando comigo mesmo por aqui e me convidando pra bater um papo e ver que tipo de louco sou eu, afinal, pra agüentar tudo isso que você traz contigo (além daquilo que, eventualmente, já estava aqui)?

A ilustração desse post é de uma animação baseada n'A Metamorfose, de Kafka (vide link ao lado). Muito bom. Quase tão angustiante quanto o livro. Não lembro de cabeça o nome do cara que fez essa adaptação, só sei que a animação, pelo menos, ficou muito interessante.

Nota ao rodapé: O autor da adaptação de Kafka aos quadrinhos é Peter Kuper (5/4/2007).

Pra começo de conversa...

Passado o momento zé-graça inicial, vamos à pergunta que não quer calar (Ô clichê, ainda to me acostumando a isso...) : Pra quê um blog?

Sinceramente? Não sei...talvez uma experiência pessoal para expressar/divulgar/detonar idéias, exercitar a escrita (to precisando mesmo fazer isso). Ou então para reunir num lugar só um bocado de coisas de que gosto, por mais discrepantes, intelectualóides ou nonsense que pareçam ou venham a ser.
Vai ver que criei mesmo só pra forçar as pessoas a ler o que eu escrevo, como me disse o primeiro amigo que fez essa pergunta, inspirado numa passagem do Milan Kundera (A Insustentável Leveza do Ser, creio eu).

Não carece de conclusões...nem de objetivos. Vai indo assim, despreocupado como esse texto. Já tá bom demais.

Just kidding...ou a Fantástica Erística dos Homens-Palito


Pra quem diz que filosofia e ciência não podem render uma piadinha, por boba que seja...

Vi uma charge parecida com essa (não pela estética, só a idéia, hehe) em algum lugar...tomei a liberdade de (tentar) reproduzir aqui...