sexta-feira, 17 de julho de 2009

Aforismos



Alguns desenham os deuses com um pé no chão e outro suspenso no ar. Com isto querem dizer: o deus considera ao mesmo tempo os assuntos materiais e a metafísica. Eu, se um dia chegar a desenhá-lo, será com ambos os pés no chão.

Se mandares uma criança pequena desenhar um ser humano, ela começará pelo tronco, ao qual ligará a cabeça como um apêndice. Tolo, por que inverteste o sentido ao crescer?

E tu? Também suspendendo o pé para cogitar das coisas do alto? Ao fazê-lo, sempre tropeço nas coisas da terra.

Foram as mutações da matéria, que nasce e morre, cresce e envelhece, goza e chora. Elas que te levaram a querer negar teu instinto de experimentar o mundo, resignando-se a pensá-lo.

Pensar não leva ao conhecimento. A consciência é uma pífia fixação no transitório: teu nariz só existe para ti enquanto sua consciência se ocupar dele.

Em seu processo de fixação desesperada em um substrato inconstante, a consciência atribui toda sorte de características aos seres. Como se o ser fosse transitivo e implicasse "ser alguma coisa". As coisas são, não pense que são algo. Nos preocupamos com uma existência com sentido, quando a todo o resto do universo aparentemente basta existir.

O deus não se mostra pelo filtro do pensamento. A experiência do divino é irracional. Na verdade, qualquer coisa que verdes só será ela mesma naquele curtíssimo hiato entre apreender e pensar: daí em diante será nada mais que tua mente.

O conhecimento é uma construção entre dois seres. Caminho de mão dupla. A racionalidade surge da eleição de um único caminho, com a exclusão do outro: sujeito e objeto.

Portanto, digo: a ambigüidade é muito mais rica que a certeza.

Certa vez li que uma tribo, durante a caça, sempre tentava ver e se ver enquanto predador e presa. Isto é inteligente. Não a racionalização que instrumentaliza o mundo, pondo-o a nosso serviço. É inteligente porque se põe no Todo. Em nenhum momento deixa de considerar as contradições da existência, como a vida e a morte.

Magia e ciência, uma só coisa. Ambas usam o mundo como ferramenta para se atingir algo.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Pánta rei

A história da filosofia grega pode ser resumida como a polêmica do devir, quero dizer, o debate sobre o acerto ou não de se entender o mundo como fluxo contínuo e incessante.

Neste sentido, os gregos, pelo menos até Platão - e ainda não sei bem se devo excluí-lo - , entendiam que a sabedoria estava ligada de forma intestina ao conhecimento das coisas contingentes, ou seja, daquilo que se deveria fazer em cada situação. A inteligência acerca da ação correta em cada momento estava ligada também à correta noção do lugar do sujeito no mundo e de sua percepção de si como participante do todo (remeto aqui ao texto sobre Platão e a destragédia...).

Desta forma, tinha discernimento aquele que, sabendo de seu lugar no mundo e das limitações advindas de sua situação, obtinha o feeling necessário para saber agir de acordo com o momento.

No entanto, ainda que o mundo seja constante fluxo de acontecimentos, o conjunto desses acontecimentos não é infinito. Ao contrário: a Física nos mostra que o universo é regido por regras, que levam esse fluxo à tendência de uma normalidade (aqui compreendida em seu sentido estatístico), o que não permite a ocorrência de eventos fora do padrão, exceto sob a hipótese de aquelas leis que regem o universo serem quebradas, coisa que ainda não se viu.

Assim, pode-se dizer metaforicamente que o mundo é uma peça de teatro, sem começo ou fim, mas cujo palco não tem estrutura para encenar todo tipo de situações. Em algum momento, forçosamente, as cenas vão ter que se repetir.

Em outras palavras, trata-se de um paradoxo: embora a realidade seja mutação, as situações e fenômenos tendem à repetição, sem que haja um princípio isolado no tempo e, tampouco, qualquer forma de escatologia ou objetivo para essa repetição, porque, se houvesse, já teria sido atingido.

Portanto, desde a Antigüidade a experiência é condição reconhecida para o tipo de sabedoria aqui descrito, pois já ter passado por uma determinada situação, ou mesmo apenas saber da possibilidade de sua ocorrência, pode ser de grande ajuda ao se deparar com ela novamente.

Se por um lado essa constatação pode deixar o homem mais sábio, poderá, por outro, levá-lo ao desespero, que o leva a duas posições básicas diante do fluxo de mutações do Ser: 1) negá-lo, admitindo a existência de algo de permanente, a partir do qual se tenta suplantar a finitude do Eu; ou 2) admitir que, diante da mortalidade e da falta de sentido geral do universo, não há mesmo nada a se fazer, limitando-se a esperar que a técnica humana melhore sua perspectiva de vida...

Essas duas posturas niilistas - querer estabelecer uma verdade e não agir - são condenáveis sob a ótica grega como formas de hybris. Viver o eterno retorno do mesmo é a única maneira de viver sem se furtar à realidade.

A hipótese que eu pretendo investigar daqui a algum tempo - e que registro aqui antes que ela me fuja - é exatamente acerca dos desdobramentos éticos dessa forma de viver.

Pois o homem, diante da intuição da forma ao mesmo tempo inconstante e finita em que o mundo está engendrado, não teria nada melhor a fazer senão agir da forma que lhe pareça a melhor possível, justamente em vista das conseqüências advindas da eterna repetição de seu ato para o devir e da futilidade que categorias como o arrependimento, a liberdade e o castigo assumem sob essa perspectiva.


Nota de rodapé: Pánta rei - "tudo flui", axioma de Heráclito de Éfeso.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

anedota cotidiana

L. digitava freneticamente. Diante de si, a mulher relatava todos os sofrimentos pelos quais vinha passando, o que fazia o jovem se sentir um tanto pesado. Mas ele não podia parar, ainda havia outras pessoas para atender, e naquele dia ele não poderia de modo algum sair de lá depois do horário...

Mas a mulher de meia idade que estava com ele na sala olhava fixamente para L., como se houvesse outra coisa que chamasse sua atenção, e que, por um instante, se deslocasse da realidade que a levou até ali. Isso perturbou L. Ele não gostava de ser estudado ou observado. Estava ali para fazer a sua parte, apenas isso, repelindo qualquer coisa que pudesse desviá-lo de suas funções.

- Você é advogado?
- Estagiário (bom, todos sempre perguntam... vai ver um advogado passa mais segurança mesmo... não que eu necessariamente concorde)

Após algum tempo...

- Desculpe-me, mas...
- Sim?
- Você tem mãos muito bonitas.

L. continuou escrevendo, apenas um sorriso, não daria muita importância àquilo, pois tinha pressa.

- Sabe de uma coisa?
- O quê?
- Desde que eu estava aguardando lá fora e te vi chegar, percebi que você se parece muito com meu irmão, quando ele era mais jovem, sabe...

L. esboçou o mesmo sorriso de antes. A mulher se perdeu em lembranças, pensando alto....Voltou-se para L., fitou-o por mais um bom tempo, em seguida dizendo:

- Olha, é muito charmoso, viu?

L. parou. A mulher fitava-o fixamente. Sem saber o que dizer, esboçou:

- Hum...obrigado!

E voltou a digitar

e a mulher


- eu falava de meu irmão.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

cartas à alquimista

(Dedicado a uma alquimista, constantemente importunada em seu ofício por um rábula que vem falar de coisas meio absurdas, das quais ele próprio acaba perdendo o domínio. Entre outras coisas, eles discutem sobre as diferenças e similitudes de seus saberes).

Gregos de novo. Bem que a professora profetizara: “Quando a gente começa um projeto na Academia, vira um chato: não fala de outra coisa!”, e é a mais pura verdade. Cá estou sentado diante do computador, para escrever mais um texto que tem como ponto de partida concepções gregas, após ter passado a tarde inteira escrevendo para uma monografia sobre o quê? Evolução de conceitos jurídicos entre os gregos. Pois é.

Que posso fazer? Sendo eu um chato ou não, são sempre esses mesmos caras que me dão o pontapé inicial de imaginação e inspiração. A eles.

Outro dia eu te dizia que o homem está condenado. Condenado a viver neste mundo caótico com uma mente que pensa em parâmetros de perfeição. Com isso, ele não consegue pensar nas coisas com simplicidade, não consegue admitir que nem tudo precisa de explicação ou de racionalidade para funcionar. Quer explicar o mundo e explicar a si próprio. Compartimenta o seu conhecimento e se julga especializado num ramo só, acha que é incapaz ou inapto para ver pelo “outro” lado.

Existe um velho problema na história da filosofia, consistente em saber o que surgiu primeiro na cabeça do grego: se teria sido os problemas relativos ao ser humano ou o fascínio com as questões da natureza. Os primeiros filósofos eram chamados de Físicos, e eles especulavam sobre a origem do mundo, os fenômenos atmosféricos e a composição dos corpos. Outros, depois, escreveram sobre os números e os astros.

Mas, ao tratar desses temas da natureza, esses homens notáveis usavam termos como “amor” e “ódio” para expressar os conceitos físicos de atração e repulsão; e sempre que enunciavam alguma lei universal por eles descoberta, a descreviam com palavras afeitas aos sentimentos humanos.

E o contrário também é verdade. De muita coisa que ingenuamente se crê ser pura literatura, o homem extraiu leis para organizar sua compreensão do mundo material. Houve uma guerra. Segundo ouvi, raptaram uma mulher, e outros foram em seu resgate, pondo fim a uma cidade. E um homem resolveu cantar esta guerra, povoando sua narrativa com seus deuses antigos. Estes deuses tinham muito interesse nos rumos da guerra, de modo que tudo que acontecia no céu repercutia nos rumos da guerra, e vice-versa. Daí surgiu a lei da holística – tudo no universo está interligado.

Então, após algumas décadas, outro daqueles homens resolveu também cantar os assuntos dos deuses. Mas, enquanto o poeta anterior pedia que a deusa cantasse para ele, este agora se dizia inspirado, de modo que era ele próprio quem proferia as palavras, e não a deusa. Era a segunda lei: o subjetivo, o homem pensava por si e era uma individualidade apartada do mundo, e este passou a ser o objeto de seu pensamento.

E este mesmo poeta deve ter, de fato, recebido uma grande inspiração de sua deusa, porque resolveu cantar as várias gerações dos deuses, narrando as sucessões de nascimentos nas famílias divinas. E esta foi a terceira lei: causalidade, tudo vem de alguma coisa que já havia antes – até mesmo os deuses.

Antes de tudo isso, no entanto, antes mesmo de o homem fazer registros por escrito, ele já se intrigava com os problemas do mundo e de si, e via tudo isso como uma coisa só. E assim criou a magia. Não vê? A magia preenche ao mesmo tempo seu anseio de mortal, que quer falar com os espíritos para entender seu lugar no mundo, bem como serve para flertar com o conhecimento objetivo da natureza. Explico: ao imaginar que seria do agrado do deus se fizesse o sacrifício de um boi para que houvesse chuva, o homem brincava com aquela lei de causalidade, até então inconsciente, da mesma forma que faz o cientista, conscientemente, ao estabelecer determinada meta e estipular a forma como exercerá seu controle sobre a natureza para atingir seu objetivo. Deus responde a ambos, mas em diferentes estilos.

Química ou alquimista? Estão ambas aí, conforme você ouça a poesia ou a exatidão.