Faz algum tempo, mas ainda me lembro vagamente de uma matéria na TV em que o repórter visitou um manicômio. Lá pelas tantas, ele resolveu interpelar um doidinho que conversava com uma árvore:
- Você está conversando com a árvore??
- Sim.
- Não tem medo de acharem que você é louco?
E o jovem respondeu brilhantemente, em tom de confissão:
- Eu seria louco – sussurrou –, se a árvore não me respondesse!
Afinal, o que é ser louco? É algo objetivamente determinável ou é apenas conseqüência de vivermos num mundo em que o desvio é, via de regra, sinal de aberração? Ao contrário do que possa parecer, essa não é uma pergunta que só começou a ser feita no século XX, saindo da boca de gente como Michel Foucault ou Nise da Silveira. Já a Inquisição tinha problemas ao julgar a alegação de que o problema do acusado se devia a uma enfermidade mental, e não à heresia ou a um caso de possessão demoníaca. Pitoresco.
Mas o fato é que, no caso da Inquisição e, mais tarde também no Direito Civil (que muito foi influenciado pelo Direito Canônico) a insanidade mental isentava o réu de responsabilidade: claro, se ele não sabe o que faz, não pode responder por seus atos. Mas se a definição da demência era difícil após séculos de experiência dos inquisidores, não é de espantar que nossos juristas tenham se poupado do trabalho de criterizar a condição do doente mental, preferindo eles lançar mão da duvidosa expressão "loucos de todo gênero", o que era, além de politicamente incorreto, um problema. Às vezes fico pensando como seria um louco em dúvida se essa expressão abarcaria ou não o caso dele...
Se ser louco de fato é uma doença (aqui entendida como algo ruim), então por que tantas vezes testemunhamos a loucura caminhar abraçada com a genialidade de gente como Van Gogh (autor da pintura ao lado) ou Nietzsche?
Aliás, o próprio Nietzsche foi acometido de uma loucura, digamos, coerente com sua postura de vida. Conta-se que, ao sair à rua certo dia, viu um cocheiro bater com a chibata no lombo do cavalo. Teve então uma epifania (deve haver um termo melhor, mas sinceramente desconheço), afugentou o cocheiro e abraçou o animal aos prantos. Após dez anos na mais plácida alienação (diz-se inclusive que esquecera o italiano, língua que dominava bem em razão de ter vivido na Itália por anos!), nosso piloso filósofo teria, conforme reza a lenda, proferido no leito de morte um enigmático "mehr Licht" ("mais luz", em alemão, sua língua materna), significando para alguns - os mais empolgados, ávidos de uma interpretação por trás das singelas palavras - algum tipo de mensagem do pensador para que as pessoas tentassem se tornar mais esclarecidas; enquanto que, para outros, ele estava meramente pedindo para que abrissem as cortinas do quarto onde ele agonizava.
Não por acaso, o mesmo Nietzsche acabou por auxiliar, mesmo que a contragosto, no embasamento teórico, se é que assim se pode dizer, de uma loucura em nível nacional: o também alemão Nazionalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, ou Partido Nazista, para os mais afeitos, que muito deveu à deturpação de idéias nietzscheanas (se tal adjetivo não existe, registre-se o nascimento de uma palavra) tais como a noção de super-homem ou o controverso anti-semitismo que, até agora, eu não sei se ele compartilhava com seu não menos estranho amigo dos primeiros tempos, o compositor Richard Wagner.
De qualquer modo, acho que mais nociva que a loucura é a própria "normalidade". É difícil definir uma pessoa normal. À pergunta "Quem você acredita ser um exemplo de pessoa normal?" dificilmente acreditaria se a maior parte das pessoas dissesse: "eu mesmo". E caso assim fosse, eu certamente ficaria mais interessado em conhecer a parcela minoritária. Preocupar-se com as opiniões e o padrão de comportamento imposto - seja ele qual for, até porque dizer que é doido também já virou moda - não deixa de ser uma coisa meio anormal. Paradoxal. Mas eu não consigo deixar de pensar assim. Comecei o texto com uma anedota, e talvez seja bom fechá-lo com outra, de modo que eu possa exemplificar a conclusão a que quero chegar, após falar brevemente de alguns conceitos e definições da loucura. Um amigo meu (cujo nome não revelarei por razões óbvias: 1) ele falava de problemas pessoais e 2) muitos dos meus amigos acertadamente se julgam ensandecidos) desabafava sobre um caso que o afligia há algum tempo e estava o deixando, de certo modo, transtornado. Ele costumava falar sobre isso comigo porque eu já havia passado por situação parecida.
- Ah, Léo, será que eu estou ficando louco?
- Sinceramente, acho que quem nunca duvidou seriamente de sua própria sanidade mental dificilmente teve uma existência digna e plena de significado, que mereça realmente ser chamada de vida.
A frase foi muito espontânea. Mas parei pra pensar a respeito. E percebi que, louco ou não, eu deveria estar certo.
Afinal, cada louco vive a sua realidade.
Notas ao rodapé: Sobre Nise da Silveira: http://pt.wikipedia.org/wiki/Nise_da_Silveira Na mesma página se encontra a figura que ilustra o post (o quadro de Vincent van Gogh).
ERREI: A frase "mehr Licht" foram as derradeiras palavras de Goethe, não de Nietzsche. Não corrigi no texto mesmo para não estragar sua estrutura.