domingo, 8 de julho de 2007

Geopolítica do tráfico

Eu estava preparando um texto sobre Sêneca para esta semana. Mas aí vi uma matéria em algum telejornal por aí que me chamou a atenção. Resolvi escrever sobre o que vi. Sêneca, semana que vem.

A matéria a que me refiro tratava de um livro didático que estaria causando polêmica entre educadores e autoridades. Geografia: sociedade e cotidiano, de Dadá Martins, Francisco Bigotto e Márcio Vitelo, traz dados sobre o espaço habitado pelo homem, como qualquer livro de geografia comum. Deve ser uma obra de qualidade, no mínimo, razoável, já que foi aprovado pelo MEC para uso pelos alunos de Ensino Fundamental da rede pública. No entanto, uma das informações oferecidas pela obra irritou setores determinados da cidade do Rio de Janeiro: um mapa da cidade dividido em zonas de influência das diversas organizações criminosas. Na mesma página, foto de uma ocupação policial no Complexo do Alemão.

Algumas vozes rapidamente se levantaram: César Maia, prefeito do Rio, obviamente preocupado com a imagem de sua cidade, tachou o livro de "panfleto", claramente insinuando que a motivação por trás do livro era muito mais ideológica do que pedagógica. Até aí, nenhuma novidade. No meu modo de ver, estamos sendo bombardeados por ideologia - seja ela qual for - a todo momento.

Professores escolares e pedagogos também contribuíram com a polêmica, ao declarar que o material é potencialmente nocivo aos estudantes, podendo significar uma influência negativa, até mesmo os impelindo a juntar-se aos criminosos (!).

Quantas questões interessantes isso evoca! Minhas opiniões a respeito:

1- Não é um livro de geografia? Geografia não seria a "descrição da Terra"? O subtítulo não se refere a cotidiano e sociedade? Ora, a questão do tráfico É uma realidade efetiva na nossa sociedade e cotidiano. Um esforço consciente para poupar os estudantes disso seria, a meu ver, um ato de alienação.

2- Dizer que o livro influenciaria negativamente os jovens, podendo levá-los a simpatizar com o tráfico e, eventualmente, entrar para seus quadros, é um reducionismo grosseiro. Se um mero livro didático tivesse tal efeito, seria simplesmente por catalisar uma série de fatores que já existem na materialidade do mundo. Vale dizer, a parcela da juventude exposta à criminalidade provavelmente já perdeu sua inocência há algum tempo, estando imersa em um ambiente em que é evidente a participação das organizações criminosas na dinâmica social. Ele não estaria refletindo sobre a leitura de um livro de geografia, como se fosse um observador externo a essa situação.

3- Muito desse pudor em mostrar as coisas como são vem, a meu ver, de uma filosofia do Politicamente Correto que se instalou de forma patológica, quase, desde que o pensamento democrático se reinstalou nesse país. Aqui, opiniões de Direita são demonizadas (qual é a minha posição política é estória pra outro dia), o eufemismo é a figura de linguagem preferida (não há pobres, há economicamente prejudicados). Essa coisa de o brasileiro ser irreverente é, sinceramente, balela.

4- Só para não me prolongar muito, um último ponto. Há que se reconhecer a diversidade de ordens dentro da sociedade. É óbvio que ela existe e os diversos movimentos no seu seio eventualmente conflitam. A normatividade não é uma só. Veja a Idade Média, por exemplo. Essa coisa de Estado onipotente e único editor das normas é uma concepção muito bem arquitetada pela ideologia do Estado Moderno e que, segundo Bobbio, culminou em Hegel e sua noção do Estado como deus terreno e sujeito último da História. Há um pluralismo jurídico que se manifesta nas lacunas deixadas pela atuação estatal. Onde o Estado não se impõe, aí brotará, de alguma forma, uma ordem. Há que se deixar o plano das idéias e ver os fatos.

Por tudo isso que tentei expor brevemente aqui, eu simplesmente não consigo concordar com todo o escândalo feito em torno desse livro. É a realidade. E ela é gritante, não basta queimar um livro didático para ocultá-la e prosseguir na aparente normalidade até que aconteça outro ato de violência para agitar a opinião pública e ser em seguida esquecido. Não sei se consegui me fazer entender, talvez seja tudo meio óbvio, mas é o que penso.

3 comentários:

Bianca Hayashi disse...

Eu e minha mente distorcida acharam geniais colocar o mapa da cidade desse jeito! Eu adoraria ver um desses de São Paulo. Politicamente correto é chato e hipócrita. Adaptação aos novos tempos? Pode ser... assim como implicaram com o panfleto da Parada GLBTT que dizia aos usuários de drogas como usar de maneira mais... consciente, por assim dizer.

Mas como já diziam muitos teóricos da semiótica da cultura e da comunicação em geral: as favelas, drogados, os excluídos socialmente são as sombras da sociedade e, como tal, devem se manter escondidas. Por mais que tentem sair e mostrar que alí estão, quem têm o poder os joga na periferia e assim fingem que eles não existem.

Mascarando a realidade...

Anônimo disse...

Hahha,
De fato, que coisa idiota.
Se um dia alguem quisesse ocultar a realidade do país, na programação da tv brasileira passariam só novelas mexicanas e desenhos animados.
Nada tedioso seria, e ainda acho que as pessoas (muitos brasileiros no caso) seriam melhores.

Nefelibata disse...

Interessantíssimo texto!

Bem, eu concordo com a Bibi; é um mapa genial, e como um estudante, eu francamente adoraria analisar um desses aqui da cidade onde vivo.

Genial também a visão pedagógica da coisa; mostrar às crianças que crescem no Rio como é sua realidade, como funciona o mundo em que elas mergulharão ou já estão se afogando precocemente. É uma geografia ativa, diferente daquele torrismo-marfinismo de uma pedagogia de Cândido, que é interessante justamente pra manter as coisas como estão, somente.

E, claro, César Maia... tu, prefeito da Cidade Maravilhosa, não deverias se avexar tanto; afinal de contas, o caos daí não é culpa sua, não?

Palhaçada...

Mas interessantíssimo texto, cara...