segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Do haikai a Platão, a destragédia do ocidente.

Hoje eu quero me redimir. Primeiramente, pelo fato de não ter atualizado este blog nos últimos três meses. Também, em razão de simplesmente ter esquecido de compartilhar com todos sobre o colóquio internacional sobre o pensamento japonês, promovido pela Fundação Japão nos dias 28 e 29 de novembro, cujas palestras me renderam a maioria dos insights no texto que segue. Encarem tal texto como uma tentativa de partilhar aquilo que lá ouvi, entremeado de minhas confusas considerações pessoais.

*****

Quase todo mundo já ouviu falar em haikai, forma poética japonesa cuja norma clássica foi estabelecida por Matsuo Bashô, pseudônimo de Matsuo Munefusa (1644-1694). O genuino haikai se trata de uma poesia em três versos, no esquema 5-7-5 sílabas. Minimalista, não tem rimas nem aparenta recorrer a qualquer tipo de metáfora ou figura de linguagem. Nem título há. Sua temática não remete a sentimentos ou qualquer subjetividade, sempre se falando da natureza. A idéia do poema é justamente transmitir o que se vê. Nada mais.

Existe uma razão profunda para isso, advinda do pensamento zen-budista. Essa corrente de pensamento se vale de diversos exercícios para tentar enxergar, na sua própria contingência, o que há por trás dos fenômenos. A idéia é desconstruir a realidade através da apreensão de um instante, em sua estrutura discreta. Vejamos o poema de Bashô:

yoku mireba
nazuna hana saku
kakine kana

Se se observar com cuidado
a flor da nazuna floresce
junto à cerca!

A interpretação que se faz desse poema sempre ressalta o fato de que o "olhar com cuidado" implica que o eu-lírico não é mais mero observador, e que a flor ganha consistência e eloqüência em sua própria existência. Trocando em miúdos: sujeito e objeto interagem, e assim o conhecimento se constrói. Trata-se de uma visão do processo cognitivo como comunicação entre o homem e o mundo, e não como apreensão deste por aquele. O homem, que na tradição ocidental desde Platão foge da compreensão originária e direta das coisas pela observação, assume aqui a posição de um centro mole, tão passível de transformações quanto aquilo que ele vê. Quem vê é também visto. Sujeito e objeto são uma e só coisa.

O fato é que o páli e o sânscrito, línguas de que se serviu a doutrina budista, na Índia, e o próprio japonês, embora de forma mais sutil, se utilizam da chamada voz média para expressar essa diluição entre sujeito e objeto.

Em português não existe essa figura da voz média, ao menos como uma categoria separada daquilo que se entende como voz ativa e voz passiva. Tal diferenciação não existe nas línguas latinas e, por conseqüência, não foi estabelecida na gramática moderna do japonês, a qual se baseou nas categorias do latim (daí eu ter dito pouco antes que a presença da voz média do japonês é sutil).

Voltando: a voz ativa expressa a ação exercida pelo sujeito; e a voz passiva, a ação sobre o sujeito. Já a voz média expressará o meio termo ou a ausência dessa relação: a ação do verbo não é exercida por ninguém, nem sobre ninguém; ou é exercida pelo sujeito sobre si próprio - o que chamamos de voz reflexiva. A língua mais próxima de nós que estruturou explicitamente uma voz média foi o grego (é, nem tão próxima assim...). É o caso da forma phainestai (mostrar-se), que deu origem depois à palavra phainomenon (fenômeno). Não à toa, Heidegger tentou se valer de formas mediais para desenvolver a sua fenomenologia, vez que o fenômeno nada mais é do que "o ente se mostrando". Um caso de voz média. Todo vir-a-ser só se pode exprimir por meio de construções mediais, pois não se sabe o que está para surgir desse processo, em que ainda não se tem o sujeito, tampouco o objeto.

Outro exemplo menos obscuro, também do grego, mas que nos remete outra vez ao Bashô e à flor de nazuna, é o dos verbos relativos aos sentidos. A gente não vê a flor, a flor é que se mostra aos nossos olhos. Não que ela esteja conscientemente fazendo isso, é claro, mas em virtude da comunicação do eu com o mundo, como eu havia dito.

O fato é que, no fim das contas, esse pensamento nos leva a uma tautologia boa... nós modificamos o mundo, que também nos modifica... tudo se contamina de tudo, com tudo se misturando. Diante disso, fica até mais fácil compreender o porquê de os gregos e os orientais encararem o mundo de maneira cíclica, enquanto que os ocidentais de mentalidade latinizada (lembre-se que o médium inexiste em latim) só conseguem ver o mundo como uma linearidade (começo-meio-fim). Esse tipo de coisa nos privou daquilo que o oriente considera a forma mais pura de conhecimento: a apreensão imediata, aquele átimo em que os sentidos captaram o ser e ainda não houve tempo para se pensar nisso. Se não se pensou, não houve sujeito, se não se pensou, não houve objeto. Só a confusão de um e outro. Médium. Não penso, logo não existo seria uma afirmação muito mais verdadeira do que a originalmente formulada por Descartes.

Aliás, isso nem é uma idéia tão distante assim da gente. Já diria Alberto Caeiro que:

"O único mistério do universo é o mais e não o menos.
Percebemos demais as cousas - eis o erro, a dúvida.
O que existe transcende para mim o que julgo que existe.
A Realidade é apenas real e não pensada".

Enquanto isso, só me resta concluir que Descartes foi um canalha que buscava a determinação do mundo pela mente, nada mais. Assim como Platão, bem antes dele. Aliás, para infelicidade deste mundo, Platão teve a boa idéia de deixar por escrito suas impressões, que interromperam a tradição científica que vinha se instalando com os pré-socráticos (vale recordar que um desses pensadores já discutia a formação da visão nos mesmos termos do haicaísta Bashô: interação entre a emanação do objeto e a apreensão do sujeito), tradição essa que ficou devidamente sepultada até a Idade Moderna. Tanto maior foi o prejuízo para as gerações do mundo quando toda essa patifaria foi misturada com as neuroses de certo Paulo de Tarso, pois desde então, o homem reina sobre a materialidade do mundo, do qual dispõe com a benção divina. O ser humano se excluiu do processo da vida, do qual pensa ser espectador e beneficiário, numa existência sem conflito nem tragédia, o que lhe fez esquecer os próprios limites. Não se vê mais como uma peça da natureza. Baco foi mandado para as cucuias, que nem o Pan do poema de Barrett Browning ("Pã é morto, Pã é morto!").

Se Apolo perdeu a guerra em Tróia, ganhou todo o mundo moderno de bandeja, com os cumprimentos de Sócrates e Platão.


Notas ao rodapé: 1- Ficou tudo muito confuso. É informação demais, que rendeu viagem demais. Continuamos através dos comentários.
2- A analogia da visão com o conhecimento me fez lembrar que, evolutivamente, a estrutura de percepção da luz é anterior ao cérebro, que se desenvolveu a partir da gradativa aglomeração das células responsáveis pela captação do estímulo luminoso.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Efemérides

Bom, hoje eu não tenho nada especial para postar. É meu aniversário e o dia foi bastante cheio! Portanto, para que a data não passe em branco, vou deixar aqui as efemérides deste dia, 22 de agosto.



2003 - Explosão do foguete brasileiro na base de Alcântara-MA;
1989 - Descoberto o primeiro anel de Netuno;
1987 - Eu nasci XD;
1981 - Morre o cineasta Glauber Rocha;
1976 - Morte de Juscelino Kubitschek;
1975 - Nascimento de Rodrigo Santoro (???);
1947 - A Universidade Católica de São Paulo recebe o título de "Pontifícia" do papa Pio XII (essa é pros fransciscanos que ficam me zuando por ter nascido no "dia da PUC", hehe);
1944 - Invasão da Romênia pela URSS;
1942 - Entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial;
1922 - Morte de Michael Collins, líder da independência da Irlanda;
1920 - Nascimento do escritor Ray Bradbury;
1917 - Nascimento do bluesman John Lee Hooker;
1914 - Primeiro combate entre britânicos e alemães na Primeira Guerra Mundial;
1912 - Nascimento de Gene Kelly;
1910 - Anexação da Coréia pelo Império Japonês;
1906 - Venda da primeira vitrola do mundo;
1904 - Nascimento do estadista chinês Deng Xiaoping;
1902 - Nasce Leni Riefenstahl (morta em 2003), conhecida por idealizar "O Triunfo da Vontade", filme da propaganda nazista;
1864 - Criação da Cruz Vermelha;
1862 - Nascimento do compositor Claude Debussy (morto em 1918);
1791 - Início da rebelião escrava no Haiti;
1770 - A esquadra de James Cook desembarca na Austrália;
1422 - Portugal substitui o calendário da era de César (cujo ano zero é 38 a.C.) pelo calendário da era cristã;
1415 - Tomada de Ceuta pelos portugueses.


22 de agosto é também o dia mundial do folclore; e o dia das cidades de Colatina (ES), Araraquara (SP), Itororó (BA) e Linhares (ES). Esta última, diga-se de passagem, minha cidade natal.

sábado, 2 de agosto de 2008

Às portas de Colono

Édipo e Antígona aguardavam fatigados, após longa viagem, o chamado dos anciãos de Colono, que deliberavam sobre a possibilidade de acolher aqueles dois viajantes em sua cidade. Não era para menos: o nome de Édipo estava associado a todo tipo de desgraça; sua relação incestuosa subvertia qualquer certeza pretensiosamente natural: ele era homem, era filho, era tio, era pai?

Natural concluir, portanto, que os prudentes anciãos não poderiam aceitar tal ameaça aos axiomas que regiam sua sociedade. Tal afronta não podia ter lugar na sua cidade. Por mais que os deuses recomendassem o dever de responsabilidade e a boa fama da cidade o confirmasse.

Diante disso, a jovem Antígona apelou aos anciãos, para que estes os acolhessem por compaixão.

Essa frase me fez duvidar da inocência da criança. Aqui está enunciada uma distinção fundamental, qual seja aquela entre ética de princípios e ética de conseqüências.

Quem se pauta pela ética de princípios não trai suas convicções. Custe o que custar. Na ética de conseqüências, nossas convicções podem ser deixadas de lado, sopesados, em nome de um resultado satisfatório e possível.

Seria uma apologia ao maquiavelismo? "Se o resultado é digno, não importa o que vamos fazer..." Não. Antígona apenas está lembrando que não existe apenas a ética de princípios. Que nem sempre é coerente viver e morrer por um princípio sem questionar. Ambos os extremos desconsideram algo muito importante, que é a percepção de que tudo está interligado, e não podemos agir a despeito do contexto em que estamos inseridos. Nossos planos devem considerar a existência de algo maior. Portanto, a mensagem que fica é: nada de Hybris, nada de desmedida. Aliás, para os gregos, a desmedida poderia se dar tanto para mais quanto para menos.

Isso aliás, é evidenciado pela fala de Édipo, logo em seguida, que pergunta de que vale tanta honra e glória, se tudo vai ficar em palavras vãs. Como é sabido, a honra para o grego vinha da ação. Mas a ação também não vale de nada se não houver parcimônia.

Refletir para agir, e agir refletidamente. Eis a moral da história.

sábado, 26 de julho de 2008

De bárbaros, acentuação e devaneios...

- Certo... e o endereço da senhora é lá mesmo, na rua Telórico de Almeida...?

- Telorico – retrucou a moça.

“De onde diabos eu tirei ‘Telórico’?”, pensou L., enquanto seguia atendendo a cliente da unidade em que estagiava fazia pouco tempo. Como era muito perfeccionista, tentava cuidar de tudo milimetricamente, como se não soubesse que sua condição de novato lhe permitia o capricho de uma ou outra falha mínima. E prosseguia em seus pensamentos, enquanto preenchia a ficha do caso daquela moça que, embora tratasse por senhora em razão do distanciamento que o trabalho obriga, era pouco mais que uma recém-adulta que engravidara do namorado e agora se via entregue ao deus-dará porque o cara não comparece com qualquer ajuda para a criança, seja por safadeza, pobreza, incerteza, ou qualquer outra mazela que não necessariamente seguirá a rima.

“Por que diabos eu li ‘Telórico’? Por que esqueci a regra mais descomplicada da língua portuguesa, a saber: ‘toda proparoxítona é acentuada’? Se não tinha acento, eu deveria ter lido ‘Telorico’ mesmo, não ‘Telórico’... será que eu associei a ‘calórico’, ‘histórico’ ou qualquer palavra do tipo? Falando em ‘histórico’, antes houvesse associado a Alarico, Odorico ou qualquer outro desses nomes de reis bárbaros – lista na qual possivelmente consta algum Telorico – e não teria pronunciado errado”.

Pode parecer muito barulho por nada. Em verdade, não foi. Tal devaneio só tomou alguns segundos da atenção de L., que logo tornou seus olhos para a tela, dando prosseguimento ao atendimento.

- Ah, sim, Telorico, perfeitamente...

Mais tarde, naquele mesmo dia, a chefe de L. iria conferir a petição elaborada por ele. Ela também se deteria, com algum estranhamento, diante daquele nome incomum. No entanto, de sua boca sairia a pronúncia correta.

Quem terá sido Telorico? Que terá ele feito de tão grandioso para, em sua empáfia de xará de rei ostrogodo, dar nome a uma viela de comunidade de periferia sobre a qual certamente não exerceu o menor impacto, seja na vida ou na morte? Quem foi esse homem, merecedor de ter seu nome imortalizado na memória, ainda que dos relativamente poucos moradores daquela rua, a ponto de o seu nome ser o único digno de menção?

L. não ia mais pensar a respeito.

sábado, 12 de julho de 2008

Os dez mais

Hoje não é texto, é uma pesquisa empírica. Como o meu barato é jogar os problemas para que quem leia possa trabalhá-los comigo, lá vai a pergunta que vi num site:

"Quais são os dez filmes/discos/livros que você levaria para uma ilha deserta?"


Atenção: não se trata de escolher os dez melhores de todos os tempos ou algo do tipo, apenas apontar quais os dez que, devido ao seu próprio gosto ou preferência, tornariam sua rotina de náufrago um pouco mais leve. Depois eu digo os meus em comentário.

sábado, 28 de junho de 2008

Cxu Vi scias esperanton?

2008 foi declarado pela ONU como o ano internacional das línguas! Em virtude disso, pretendo postar, ao longo do ano, alguns textos sobre esse assunto tão fascinante.

E o primeiro post dessa série será dedicado ao esperanto.

Mi scias, kaj Vi?

O esperanto é uma língua internacional, idealizada pelo médico polonês Ludvik Lejzer Zamenhof, que publicou a primeira gramática do idioma em 1887. Ao que parece, a inspiração de Zamenhof veio da constatação de que o entendimento entre os povos passa, em grande parte, pelo domínio de um idioma neutro como veículo de comunicação entre os diferentes grupos humanos. O próprio Zamenhof sentiu essa necessidade em seu cotidiano, enquanto jovem judeu habitante da Polônia, majoritariamente católica e, à época, dominada pelo Império Russo.

Assim, ele cresceu num ambiente multicultural - e pouco harmonioso. Utilizava-se cotidianamente de três idiomas: russo, polonês e hebraico; além de adquirir conhecimentos posteriores em latim, grego, inglês, alemão e francês.

Essa conjugação de experiência de vida, necessidade prática e conhecimento acumulado permitiu a Zamenhof conceber artificialmente uma língua cujo léxico se dividia entre a herança do vocabulário latino (aproximadamente 60%) e germânico (40%), e de fonética eslava. O esperanto é dotado de um sistema de derivação de palavras que potencializa a riqueza lexical quase ao infinito, através de um bem construído sistema de prefixos, sufixos e termos correlativos.

Extremamente fácil (fundamentado em 16 regras gramaticais elementares), sendo possível de assimilar em questão de semanas, e com elementos comuns à maioria das línguas européias, o esperanto teve uma difusão rápida e muito mais bem-sucedida do que aquela experimentada por outros projetos de língua internacional, como o Volapuque e o Ido, a despeito de dificuldades tais como a perseguição dos esperantistas pelos regimes totalitários do século XX (a família Zamenhof pereceu em Auschwitz; Stálin considerava a língua um instrumento do capitalismo ocidental...) ou a falta de informação a respeito da língua, muito grande até hoje, apesar das facilidades da internet.

Eu divulgo o esperanto. Hoje nem tanto pela ideologia que o informa, que é sublime, mas um tanto utópica, a meu ver, e sim pela sua reconhecida propriedade propedêutica: é fora de questão que o esperanto pode auxiliar em muito no aprendizado de outras línguas. Em última análise, permite o acesso a uma forma bastante interessante e original de contracultura, por assim dizer. Em seguida, deixo alguns links que podem falar muito mais do que essa breve exposição que tentei fazer:

Esperanto na Wikipedia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Esperanto

Wikipedia em esperanto (maior que muitas versões em línguas naturais por aí):
http://eo.wikipedia.org/wiki/%C4%88efpa%C4%9Do

Curso de esperanto para baixar: http://www.kurso.com.br/bazo/index.php?pt

No orkut: http://www.orkut.com.br/Community.aspx?cmm=138781

Brazila Esperanto-Ligo (Liga Brasileira de Esperanto): http://esperanto.org.br/p/


Lernu esperanton!

sábado, 21 de junho de 2008

inconstante cosmológica

(divagando um pouco sobre uma leitura de jornal)


No consultório:

- Doutor, ele não come, não faz mais o dever de casa...
- Alvy, o que está acontecendo?
- O universo está se expandindo...
- Mas o que você tem a ver com isso, meu filho?!
- Se o universo está se expandindo, então tudo vai acabar...
- Mas o Brooklin não está se expandindo!
- Ora, Alvy, isso ainda vai demorar BILHÕES de anos! Então vamos simplesmente aproveitar enquanto estamos aqui, sim?

Alvy Singer, personagem de Woody Allen em Annie Hall, comicamente perdia o sono de sua infância graças ao problema da expansão do universo. Mal sabia o moleque que isso anda fazendo muita gente grande perder o sono desde que Edwin Hubble comprovou que o universo está se expandindo, em 1924.

Faz precisamente dez anos que se repropôs o problema da energia escura, que atua como um repelente no cosmo. Tudo começou quando as medições do movimento das galáxias pelo Hubble (agora é o telescópio, não o astrônomo) revelaram que estas têm se afastado num movimento acelerado. Isso é bizarro porque, considerando-se o sistema total do universo, a taxa de aceleração com que se movem as galáxias contraria a atuação da gravidade, que, segundo se acreditava, atuaria freando a expansão do cosmo.

Na busca de uma razão teórica para esse paradoxo (já que ausente qualquer perspectiva de verificação empírica), chegou-se a Einstein (sempre ele). Curiosamente, Einstein acreditava, assim como Galileu e muitos antes dele, que o universo era imóvel, muito embora não ignorasse as dificuldades oferecidas pela influência da gravidade entre os corpos. Assim, formulou a idéia de uma constante cosmológica, que atuaria justamente em contraposição à ação gravitacional.

Posteriormente, o físico alemão acabou silenciando sobre essa questão, enquanto prevalecia a idéia de que o universo estava sim em expansão, sob a influência unicamente da ação gravitacional, que levaria enfim ao movimento de contração total do universo - o big crunch - e, daí, o recomeço do ciclo. Idéia velha, na verdade. Basta lembrar Hesíodo e a relação entre o Cosmo e o Casma, parcela do Caos que permaneceria em torno do universo, finalmente o engolindo para, daí, reiniciar a ciranda cósmica.

Pois bem, a idéia de Einstein foi ressuscitada. Essa energia escura, que repele as grandes estruturas do universo, seria a constante cosmológica por ele imaginada.

Alguns problemas ainda estão em aberto. Por que essa energia escura não se manifesta em porções pequenas da matéria bariônica, como um corpo que cai aqui na Terra? Se ela se manifesta como mais uma força da natureza - em oposição à gravidade - porque é percebida como uma constante, e não de modo a variar segundo as condições de espaço e tempo?

É Alvy, melhor tratar de dormir mesmo.

sábado, 24 de maio de 2008

Sobre porretes, revoluções e joysticks

Hoje eu fui assistir ao novo filme do Indiana Jones. Não vou fazer resenha, quem quiser que assista e tire suas próprias conclusões sem influências prévias, mesmo porque eu não sou nenhum grande entendido em sétima arte para me meter a fazer crítica.

O que eu posso dizer sem contar muito do filme e, portanto, sem estragar a diversão de quem ainda pretende vê-lo, é que lá exploram a temática do conhecimento tecnológico de povos antigos. Tecnológico aqui entendido como tecnologia "moderna", porque a partir do momento em que o macaco pegou o bastão para bater no rival (aqui remeto a 2001 do Kubrick, com a abertura de Assim falou Zaratustra, do Richard Strauss, tocando ao fundo), já tínhamos aí um artefato tecnológico, quando o australopiteco descobriu as relações de causalidade e as aplicou mediante um ato de violência contra a natureza - ao utilizar-se de um instrumento, conceber uma ferramenta - para obter do meio o que ele necessitava (no caso do filme - 2001, não Indiana... - era violência mesmo, já que o símio usou essa lógica para descer o cacete no outro macaco) .

Enfim. Duas coisas me ocorreram durante a projeção. Duas coisas igualmente espantosas.

A primeira diz respeito justamente às surpresas que pode nos causar a mensuração do nível tecnológico dos antigos. É. Eu fui daqueles que leu muito os livros de Erich v. Däniken... cheguei até a escrever para ele uma vez - num inglês sofrível de Ginásio, é verdade - , porque ele coordena uma associação que se propõe provar as teorias dele a respeito dos avanços tecnológicos dos "primitivos" e uma provável influência extraterrestre por trás disso (idéia que eu não acho que esteja tão bem fundamentada hoje, mas também não acho nenhum absurdo). Como resposta da cartinha recebi um monte de informações sobre a tal associação, que eu tenho até hoje, embora na ocasião eu não tenha dado continuidade à empreitada.

Eram os deuses astronautas e Os olhos da Esfinge embalavam minha imaginação de aspirante a arqueólogo e eram praticamente leituras de cabeceira. Agora mesmo, tenho em mãos um exemplar da 50ª edição de Eram os deuses... (50ª! um best seller mesmo).

Voltando ao ponto: nessas obras, v. Däniken aponta uma série de artefatos e conhecimentos de povos bastante recuados no tempo que demonstrariam o domínio de técnicas que só viriam a ser "redescobertas" até dezenas de séculos mais tarde. Desde os relatos religiosos, que falavam em deuses voando em carros de fogo (os textos sagrados hindus), bombas atômicas (Sodoma e Gomorra, há quem diga) e teoria da relatividade (o profeta Elias, que ao cabo de algumas horas de ascensão à presença divina teria percebido que, na verdade, lá passou vários anos) até evidências mais palpáveis e nem por isso menos intrigantes, tais como o conjunto de vaso e haste de argila revestida de cobre encontrado no Iraque que, posto em movimento, produz eletricidade suficiente para acender uma lâmpada; a arquitetura das pirâmides ou de certas construções pré-colombianas que parecem soldadas... parodiando Shakespeare, não só entre o céu e a terra há muito mais do que se supõe, mas também entre o passado e o presente.

E o segundo ponto que me pegou diz respeito ao presente mesmo. Agora mesmo estamos passando por uma revolução tecnológica do caramba e, ao contrário do que parece ter ocorrido em todas as outras ocasiões da História em que isso aconteceu (Revolução Agrícola, Urbana, Industrial...) a gente não se dá muita conta disso, e age com a maior naturalidade. Os recursos utilizados para rodar um filme desse naipe, por si só, nos dá notícia de como as coisas têm evoluído rápido. O ritmo é estonteante e ao mesmo tempo natural. Enquanto foi necessário esperar umas três gerações para nos acostumarmos com a passagem do cinema mudo ao technicolor, a minha geração viu o Atari (ou algum similar nacional, como o dismac) e o Wii. E um simples jogo de tênis em um e outro definitivamente não é a mesma coisa.

Não sem certa nostalgia, percebi que o Indy de hoje, do nosso cinema cheio de truques de encher os olhos, também não é como o de ontem.

(Droga! Eu tinha dito que não ia opinar sobre o filme...)

sábado, 3 de maio de 2008

intrigado

Hoje eu gostaria de postar algo bem sucinto, que eu teria acrescentado em algum post anterior, caso não houvesse esquecido de fazê-lo. Diz respeito a uma entrevista que me chamou a atenção.

Diante do conteúdo de muitos dos meus textos, com certeza alguém deve pensar que eu sou meio obcecado com a temática da morte, o que não é verdade. O que me intriga é a reação das pessoas frente a essa questão que, assim como algumas outras grandes questões da vida (das quais eu também tento tratar aqui), revelam muito daquilo que o ser humano prefere silenciar, quando não acabam servindo mesmo de motor para as coisas que o homem faz.

Enfim. Faz já algum tempo. Eu estava assistindo ao Globo Esporte. Devia estar muito entediado para assistir aquilo, porque eu tenho uma birra com programas esportivos em geral, pois eles socam futebol e Fórmula 1 o ano inteiro e, com algumas exceções, só se lembram de esportes "menores" (e não tão bem patrocinados, diga-se) quando o Brasil tá em final olímpica ou algo do tipo (alguém aí ouviu falar em Tae Kwon Do depois do Pan?).

Certo. Como eu dizia, estava assistindo ao Globo Esporte. Eis que passou uma entrevista com uma nadadora cujo nome infelizmente não retive, e que sofria algum tipo de doença degenerativa que, até onde pude entender, invariavelmente a levaria a um estado vegetativo e daí à morte. No entanto, ela continuava nadando, a despeito das dificuldades cada vez maiores, o que é, sem a menor dúvida, louvável e até mesmo exemplar.

Qualifico assim a atitude dela porque acho que a gente reclama muito da vida. Vivo dizendo às pessoas que temos que ser mais otimistas, que por mais que elas não queiram ver, nossas vidas são iluminadas e que o problema muitas vezes é conseqüência de nossas bobagens mesmo. Mas o ponto não é esse.

O que me chamou a atenção, de verdade, foi uma frase que ela disse e que passou despercebida na matéria... ou pelo menos foi extremamente sutil. Ela disse algo do tipo:

"... é muito duro estar aqui sem nem ao menos saber quando morrerei"

Na ocasião eu fiquei realmente espantado com essa frase. Talvez até de forma desproporcional, dado o contexto em que ela foi proferida. Só o que me ocorreu foi:


"e alguém sabe?".

sábado, 26 de abril de 2008

9.0 Richter

Terça-feira foi um dia normal. Trabalhei, estudei e fui para a faculdade à noite. Lá encontrei amigos...comemos, bebemos e conversamos animadamente. Normal.

Daí eu volto para a sala e alguém pergunta: "Teve terremoto?" Diante do nonsense da pergunta, minha única reação foi rir e voltar aos meus afazeres. Só quando eu cheguei em casa que soube, surpreso, que efetivamente houve um tremor de terra horas antes.

Que coisa. Meros cinco segundos (acho que foi isso) de tremor, que muita gente nem sentiu, e foi o bastante para horas e horas de sensacionalismo barato na tevê. Obviamente que eu perdi algum tempo pensando a respeito, como não poderia deixar de ser... Por que tanto se falou nisso?

Eu tenho uma teoria. Uma teoria que tem a ver com as pessoas ao meu redor (boa parte delas, pelo menos) e comigo mesmo.

As pessoas buscam segurança. Buscam por certezas na vida. É realmente desesperador imaginar que o chão, aquilo que temos como mais firme nesse mundo - pelo menos no Brasil - de repente não nos oferece mais a segurança a que estamos acostumados. Isso só me faz crer, cada vez mais, que segurança é ilusão.

É ilusão no sentido de que é só mais uma sensação da nossa mente, que se fecha à realidade que insiste em tentar em nos mostrar que, bem ou mal, tudo acaba.

Na faculdade nos falam sobre a segurança que o direito oferece à sociedade. Engraçado como essa idéia resiste a todas as revoluções.

Tratamos de construir algo com as pessoas ao nosso redor. É-nos abominável a idéia de morrer no abandono...é menos penoso imaginar-se no leito de morte velhinho, rodeado de entes queridos, talvez. Mas sempre nos esquecemos de que, no instante em que a última centelha que nos anima se extinguir, estaremos invariavelmente sós.

Vejo algumas pessoas passando por situações pouco agradáveis. Algumas confiam numa Providência que vai dar um jeito em tudo. Outras são otimistas, apenas. Há ainda os que se entregaram à inércia do conformismo ou ao niilismo. Daqueles que, por outro lado, tentam mudar o que acham que não está bom em suas vidas, alguns obtêm êxito. Seja porque conseguiram aquilo que queriam, seja porque isso serviu para operar uma mudança em si mesmos.

A vida neste mundo é mudança. Mesmo nossas escolhas envolvem riscos, e tentamos nos cercar de todas as garantias quando temos que escolher um caminho. Isso não é escolha! Escolher nunca deixará de implicar perda... pelo menos daquilo que se deixou de escolher. Outro dia me disseram (manifeste-se nos comentários quem o fez, não se deixe impedir pela modéstia) que para nascer é necessário romper justamente com aquilo que nos mantém vivos! E isso de fato é lindo porque ironicamente ou não, intencionalmente ou não, dramaticamente ou não, isso é a síntese de tudo o que nos aguarda.

Outra coisa que me disseram: a vida não é uma sucessão de fases intercaladas por provações: escola - vestibular - trabalho... É uma continuidade de contingências determinadas por escolhas que quase nunca estamos em posição privilegiada o bastante para analisar com cuidado.

Não quis fazer auto-ajuda. Não quis fazer desabafo. Mas eu tinha que fazer essas observações antes de ir dormir.

sábado, 5 de abril de 2008

Do tributo ao atributo

Prova de Direito Tributário na segunda. O monitor da matéria enviou seis provas diferentes por e-mail, sendo que uma delas é a "oficial", aquela que a gente vai receber na hora. Com isso eu já fiquei meio p... da vida porque na prática isso significa ter que resolver seis provas. Depois a raiva passou, juntei-me a algumas pessoas e dividimos o bolo. Pensando bem, até que isso tudo não é de todo mau, pelo menos na hora da prova não corro o risco de me deparar com algo que eu não estudei.

Aí, quando eu já estou conformado, abro o arquivo das provas. Vem lá um caso prático e em seguida alguns itens para responder. Aparentemente nada muito desafiador.

O primeiro ponto pedia para determinar os principais institutos jurídicos envolvidos no caso. Daí comecei a refletir sobre o que diabos eu deveria entender por "instituto jurídico" e comecei a viajar. Vai vendo.

É engraçado pensar sobre o significado das palavras, porque parece que a gente chega, em última instância, num grande vazio. A título de exemplo, um exercício metalinguístico: o verbete "dicionário" provavelmente nos remeterá a "livro" e este, por sua vez, a "obra", que me remeteu a "trabalho", e daí a "atividade", definida como "qualidade", daí passando a "atributo" e então a "ser". Resolvi fechar o dicionário nesse ponto, em que a pesquisa começava a se tornar literalmente metafísica.

Ainda hoje eu estava lendo a Paidéia, livro que eu comecei a ler pelo menos uns seis meses antes de iniciar este blog (o que já faz um ano, por sinal) e ainda estou na metade. Um dia eu ainda consigo terminar a leitura. Enfim, sem divagações: lá eu estava lendo sobre Platão, mais especificamente sobre um diálogo dele em que Sócrates, desocupado-mor de Atenas (palavras minhas, até porque o Jaeger acha esses caras o máximo) estava discutindo com um sofista sobre a essência da virtude. O problema era mais ou menos o mesmo que surgiu para mim, já que Sócrates queria demonstrar que as várias qualidades que a gente reconhece como virtuosas (justiça, heroísmo, discernimento etc) não são elas próprias virtudes, senão aspectos da Virtude, que é única, justamente pelo fato de reconhecermos virtude em todas essas ações.

Claro que tudo isso só pode levar à Teoria das Idéias do Platão. Aí a coisa fica mais complicada. A teoria original, segundo Jaeger, está fundada nessa concepção de eidos, que seria exatamente o resultado desse exercício de generalização. O que ferra tudo é que Platão apela para a questão da reencarnação para explicar o porquê de reconhecermos as essências das coisas. Jaeger diz também que a Teoria das Idéias sofreu deturpação pela Lógica moderna que, apoiada em Aristóteles, afirma que em vez de resolver o problema do Ser, Platão teria complicado ainda mais, fazendo uma duplicação desnecessária do Ser.

Até que eu concordo com o Jaeger. Dá mesmo para defender que a resposta de Platão era de cunho lógico, e não ontológico; logo, ele não poderia ter pensado que os conceitos existem materialmente... até porque "conceito" nem era uma noção estabelecida à ocasião. Não que a explicação do Platão não tenha outros problemas.

Será que os sofistas, adversários de Sócrates (se ele também era um sofista, aí já é questão pra outro dia), é que estavam certos? Será que, no fim das contas, é tudo totalmente relativo mesmo? A gente sempre pensa a palavra como um instrumento, mas aí eu penso que toda ferramenta tem que ter algo por trás para poder agir. E, ao fazer essa análise, seja com os vocábulos, seja com as idéias, o único destino que eu vejo é uma regressão ad infinitum - ou talvez pior - ao vazio.

Fica aí a provocação. Voltarei a esse tema, mas não agora. Preciso continuar a responder as questões nem tão existenciais do Direito Tributário.



Nota ao rodapé:

Imagem: Platão, do verbete de mesmo nome, na Wikipedia.

sexta-feira, 28 de março de 2008

um pouco de papo furado...

Em Acintita Sutta (algo como "discurso sobre o inconjecturável"), o Buda Xáquia Muni diz que há quatro coisas sobre as quais não se deve perder tempo pensando, pois seria caminho certo para a loucura, a saber: a extensão dos poderes desenvolvidos pelo estado de Buda; a extensão dos poderes no estado de Jhana (resumindo bastante: estado de meditação profunda); a Lei do Carma; e a origem do mundo. Segundo ele, são coisas a respeito das quais não se pode comprovar teorias, e provavelmente um estudo mais sério a respeito poderia ser, além de infrutífero, enlouquecedor.

Por experiência própria, sei que ficar investigando a origem do mundo realmente pode pôr alguém doido. Aliás, a esse respeito ver um post que eu escrevi lá no começo do blog quase, sobre Parmênides... foi ele quem mais me perturbou com suas teorias. No entanto, gostaria de trazer mais alguns questionamentos que, mesmo sendo explicáveis em certo sentido, não deixam de ser fascinantes, porque, afinal de contas, esse mundo é realmente muito estranho e como me foi dito a alguns meses, a natureza não é lógica:

1- A gente aprende na escola que o cerebelo é um cérebro primitivo. Então me respondam: por que ele é responsável pelos movimentos mais refinados do corpo, que provavelmente só se manifestam culturalmente? Quero dizer, o cerebelo é responsável pelo equilíbrio e por movimentos de destreza ou delicadeza. Esses últimos só passaram a ser mais visados quando o homem descobriu a técnica, o instrumento e a arte...ou não?

2- Nós precisamos nos alimentar para viver. No entanto, o metabolismo do alimento oxida nossas células. Curioso, não? Aquilo que fazemos para viver é responsável, ao mesmo tempo, pela nossa morte.

3- Seguindo um pouco pela mesma linha dialética do tópico anterior, a personagem-título do romance Sidarta, de Hermann Hesse, diz a seu amigo Govinda que aprendeu a respeitar todos os seres vivos e não-vivos porque eles contêm em si o germe de Buda e da perdição. Trocando em miudos: considerando o big-bang a origem do universo, você, de alguma forma, já estava lá. Do mesmo modo, você já foi tudo que existe. Tudo isso sem nem sair do lugar, porque se não houver nada além do universo, não há que se falar em referencial no espaço (remeto ao texto sobre Parmênides - Matando o tempo - mais uma vez). Ou seja: você é o todo se diferenciando num desenvolvimento interno. Talvez por isso que, em mais de uma ocasião, eu perdi a noção de individualidade meditando.

É, dá mesmo para ficar meio louco. Assombrado, pelo menos. Como se já não bastasse o mundo visível e seus simpáticos habitantes para nos enlouquecer, ainda procuramos o que está além para nos gerar alguma angústia.

sábado, 22 de março de 2008

(des)Encanto

Semana Santa na televisão é SEMPRE a mesma coisa... filme da Paixão de Cristo, de Moisés, Príncipe do Egito et cetera e tal...

Não que eu ache ruim. Agora mesmo, estou assistindo a um filme sobre Moisés (mais especificamente a cena em que os primogênitos dos egípcios morrem)... Curto a tentativa de reconstituição histórica e cultural da coisa toda. Para alguém que quando mais jovem queria ser arqueólogo (taí um exemplo de como muitas coisas acabam perdendo o encanto com o passar do tempo...essa idéia vai permear todo o texto), todo esse clima de Antigüidade é bastante convidativo.

Mas ultimamente, em relação aos relatos religiosos de um modo geral, tenho refletido mais sobre o fascínio das estórias do que sobre a confirmação da História. Tudo ao mesmo tempo épico e singelo, terno e retumbante.

(opa, Moisés está abrindo o Mar Vermelho agora).

Há um aspecto particular que me encanta e intriga: os deuses eram tão mais próximos de nós antigamente! Falavam conosco, combatiam conosco... alguns até transavam conosco (não que eu me inclua aqui, foi força de expressão). Por que será que, depois da Antigüidade, a atuação de todas as entidades de todos os panteões parece ter se tornado mais discreta?

Credo quia absurdum, dizia Tertuliano. Diante do que se afigurava para nós absurdo, só restava mesmo crer. Hoje a ciência está aí, explicando fenômenos outrora assombrosos (agorinha mesmo, Moisés tirou água da pedra), não deixando muito lugar para divindades, santos e mitos no coração das pessoas.

Por amor à filologia e ao meu último post, quando eu criticava a mania de citações, tenho que fazer um parêntese aqui: Tertuliano nunca disse essa frase. O texto original dizia credibile est, quia ineptum est (De carne Christi 5.4); e dizia respeito, como sugere o título da obra, à polêmica presente nos primeiros tempos do Cristianismo, a saber: seria Cristo feito de carne como nós ou uma presença imaterial? (à primeira vista ambas as frases têm idêntico sentido, e o tema cabalístico demais para desenvolver aqui, portanto remeto o leitor de uma vez por todas para http://www.tertullian.org/articles/sider_credo.htm ).

Voltando. A ciência ultimamente tem se "intrometido" muito na seara da religião, que a meu ver não tem que ter tanto compromisso com racionalidade. Pelo menos não por si. Mas o raciocínio que se propõe lógico, científico e irrefutável está sempre visitando o campo da religião. Às vezes, isso acontece por convite da própria religião, como se deu com a adaptação do aristotelismo ao catolicismo (influência inexistente entre os cristãos orientais) ou, para pensar num exemplo mais afastado de nossa realidade, com o Budismo indiano, que através dos tratados do Abhidhamma Pitaka pretende descrever o conjunto de todas as sensações possíveis através do cruzamento de séries de categorias fundamentais, ou seja, conferindo lógica a Maya (o mundo visível) por meio de permutações.

É, parece que o homem está mesmo disposto a trocar a sarça ardente do deserto pela árvore de possibilidades da matemática (diga-se, aliás, que no colégio esta me parecia muito mais árida).

Outras vezes, a ciência faz suas incursões à revelia da religião. Desde as bizarrices - nem tão bizarras assim - do v. Däniken, que corre o mundo tentando provar que os deuses na verdade eram astronautas, até os cientistas que atribuíram as pragas do Egito a um desequilíbrio ambiental, passando por muito mais coisas que soam um tanto desnecessárias.

Justiça seja feita, muitas vezes a reação da religião diante da ciência é desproporcional e tola (Galileu e células-tronco são casos paradigmáticos).

Não penso, entretanto, que tudo se resuma a uma treta de foice entre a fé e o ceticismo do progresso da ciência, por mais que estejamos vivendo uma nova revolução tecnológica, a passos muito mais largos do que as anteriores, e quase ninguém se dê conta disso.

Talvez seja o homem que se desencantou. Faz alguns milênios que trocamos as florestas pela civilização, novos espaços foram se diferenciando desde então (política, economia e mesmo família...campos que antes caminhavam junto da religião) e isolando o espaço do fantástico. Nos afastamos da natureza e, conseqüentemente, do divino. Quer coisa mais discrepante do que procissão de domingo de Ramos no centro de São Paulo? A esse respeito, vale lembrar que existem estudos muito interessantes - sim, científicos - sobre a correlação entre a diversidade do ecossistema e a pluralidade de entidades duma religião (o que ajudaria a entender o porquê de os povos do monótono deserto tenderem à monolatria enquanto que os gregos tinham aquela multidão de deuses...).

É isso. Talvez eu esteja me encaminhando para conclusões um tanto românticas e idealistas, motivo pelo qual fico por aqui.

Oxalá um pagão ainda eu fosse,
Por velhas ilusões acalentado.
A paisagem seria bem mais doce
E o mundo muito menos desolado

William Wordsworth, poeta inglês (1770-1850).

(E Moisés acaba de receber as tábuas da Lei).

domingo, 2 de março de 2008

Com o ouvido no rádio

Hoje eu gostaria de fazer algo diferente: comentar notícias. Nada grandioso como a independência do Kosovo (cuja pronúncia correta descobri ser "Kosôvo"...falta saber se o s tem som de z ou ç) ou o estardalhaço do Chávez posicionando tanques na fronteira com a Colômbia...nem a "renúncia" de Fidel e do Putin, nada disso (nossa, tem muita coisa acontecendo mesmo...).

Certa vez eu estava ouvindo a CBN e o repórter comentava sobre a quantidade absurda de citações erradas que os parlamentares têm feito em seus discursos em Brasília. Eu já havia lido algo a respeito numa dessas Vejas que infestam as salas de espera desse mundão nosso ("velho, esse cara deve ter esperado um bocado" é o que você deve estar pensando... ah, a propósito dessa revista pavorosa, vai vendo: http://www.projetobr.com.br/web/blog/5#6304 ) e é realmente intrigante a capacidade dos caras de desencavar pérolas de Os Sertões ou transformar linhas do Bobbio em frases de efeito para se safar nas votações pela cassação, entre tantas outras papagaiadas. Capacidade intrigante, mas não tão estranha - pelo menos a mim -, já que o que mais há no mundo jurídico é o festival das citações.

De qualquer modo, creio que seria de bom tom que todos nós - políticos, juristas, jornalistas, escritores, estudantes e toda sorte de (des)ocupados - tenhamos o mínimo de responsabilidade antes de sair por aí citando autores quando muitas vezes eles: a) não disseram a frase que atribuímos a eles; b) se disseram, não foi exatamente daquele jeito; ou c) se foram eles que disseram, e daquela exata maneira, provavelmente o contexto é que não tem nada a ver.

Se nós tivéssemos esse cuidado, impediriamos que tantos caras do naipe de Shakespeare ("Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa [??] filosofia"), Nietzsche (frases como "O Evangelho morreu na cruz" ou "O que não me mata me fortalece" seeempre perfeitamente contextualizadas) ou Fernando Pessoa ("Navegar é preciso, viver não é preciso") e Cnaeus Pompeius Magnus (que foi quem realmente disse o célebre "navigare necesse, vivere non necesse" atribuído a Pessoa, muito embora tenha morrido uns bons mil e novecentos anos antes do escritor português nascer) façam par com aquele indivíduo desconhecido citado ironicamente por Nelson Rodrigues em O óbvio ululante: "Tudo é memória, disse não sei quem".

§§§

Outra da CBN: Comentário do Dimenstein. Para quem não sabe, ele fala na rádio sobre capital humano, educação e coisas afins. Acho muito bacana, embora dessa vez eu deva ressalvar o que, na minha opinião, é uma avaliação simplista. Ele contava sobre um projeto de lei aqui em São Paulo que institui uma premiação para professores e funcionários de escolas cujos alunos apresentassem bons índices (um plus no salário no fim do ano, se não me engano). O legal dessa iniciativa, segundo ele - e aqui eu concordo - é que todos os responsáveis pelo colégio receberiam essa gratificação (desde o faxineiro até o diretor). Sim, é louvável. Só que daí o comentarista fecha com algo do tipo "assim, aqueles que se esforçam mais são recompensados e os que não se esforçam tanto deixam de ganhar um pouco mais" (faz um tempo que eu ouvi isso, espero não cometer o pecado da citação que eu criticava há pouco).

Francamente. Creio que não foi essa a idéia que ele realmente quis passar, mas isso está mais para papo de economia do que de política educacional. "Ah, você vê o esforço dos docentes e funcionários e compara com os resultados dos alunos ceteris paribus e zaz". Quero dizer, eu penso que não adianta falar em desmotivação por parte daqueles que trabalham nas escolas paulistanas se de repente as contingências do meio não colaboram para que haja um aprendizado saudável ou mesmo condições de trabalho adequadas...miséria, descaso, criminalidade. Sem comentários.


Nota ao rodapé:

1- Confesso que eu mesmo só fui confirmar que a frase não era de Fernando Pessoa nas aulas de latim na faculdade. Aliás, citando (er...) certo franciscano jocoso: Ave Darci, morituri te salutant! Bons tempos de calouro.
2- "Mas que m... é essa de ceteris paribus?" pergunta você. É isso aqui, respondo eu: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ceteris_paribus ... vinda diretamente das aulas de econometria com o livro do Mankiw, mas essa já não é uma das minhas melhores lembranças de calouro.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Tá bom, vamos falar de Budismo!


Foi o que eu exclamei quando me lembrei deste blog, que por sinal estava às moscas, no meio de uma discussão sobre o tema. Como ainda há muuuuito o que se estudar a respeito, vou voltar várias vezes a isso. Não deixa de ser um estudo de uma filosofia do mais alto refinamento, que é, aliás, um dos objetivos dessa página - discutir filosofia!

Pois bem, quem foi Siddatha Gotama, o Buda por excelência, e o que ele tem a nos dizer? Vamos fazer uma pequena viagem pelos textos do cânone para ter uma idéia...

Gotama nasceu como príncipe de um clã guerreiro do norte da Índia, os Shakyas. Viveu cercado de luxo durante toda a juventude, a tal ponto que, por volta dos 20 anos, nem se dera conta de que as pessoas sofrem, envelhecem e morrem... pasmem!

Certa vez, durante um passeio para além dos limites do palácio, viu um velho doente...depois, um cortejo fúnebre...aí ele começou a sacar que as coisas boas não duram para sempre...

aliás, nada dura para sempre....

Retornando ao seu harém, abriu a porta e teve uma epifania...viu nas belas mulheres que lá estavam um monte de velhas decrépitas e moribundas XD ...estava caindo na real, como se diz.

Brincadeiras à parte, fato é que ele ficou realmente perturbado com as coisas...ficou inquieto, quis partir em busca de um sentido (esse mesmo impulso me moveu por um mar de idéias ao longo do último ano até chegar no Budismo), e foi isso mesmo que ele fez. Abandonou o palácio, a esposa Yasodara e o filho recém-nascido, Rahula.

"Antes do meu Despertar quando eu ainda era um Bodisatva não iluminado, eu pensei: 'A vida em família é confinada, um caminho empoeirado. A vida santa é como o ar livre. Não é fácil viver em casa e praticar a vida santa completamente perfeita, totalmente pura, como uma concha polida. E se eu raspasse o meu cabelo e barba, vestisse os mantos de cor ocre e seguisse a vida santa?' "

No começo, ele se uniu às tradições ascetas da Índia...com um grupo desses ascetas viveu algum tempo, mortificando-se ao extremo, em busca de alguma purificação...coisas do tipo comer apenas um grão de arroz por dia, até chegar ao ponto de tocar o ventre e sentir a coluna...

"Eu pensei: 'Todos os contemplativos ou brâmanes que no passado experimentaram sensações dolorosas, torturantes e penetrantes devido ao esforço, isto é o máximo, não existe nada além disso. Todos os contemplativos ou brâmanes que no futuro experimentarão sensações dolorosas, torturantes e penetrantes devido ao esforço, isto é o máximo, não existe nada além disso. E todos os contemplativos ou brâmanes que no presente experimentam sensações dolorosas, torturantes e penetrantes devido ao esforço, isto é o máximo, não existe nada além disso. Mas, através desta prática de austeridades atormentadoras eu não alcancei nenhum estado supra-humano, nenhuma distinção em conhecimento e visão digna dos nobres. Poderia haver um outro caminho para a iluminação?"

também viu que não era por aí....

"Agora, tendo comido comida sólida e recuperado as minhas forças, afastado dos prazeres sensuais, afastado das qualidades não hábeis eu entrei e permaneci no primeiro jhana, que é caracterizado pelo pensamento aplicado e sustentado, com o êxtase e felicidade nascidos do afastamento. Mas essa sensação prazerosa que surgiu em mim não invadiu a minha mente e permaneceu."

Com isso, ele descobriu o caminho do meio:

“ Bhikkhus, há esses dois extremos aos quais aquele que abandonou a vida em família e seguiu a vida santa não deve se entregar. Quais dois? A busca da felicidade nos prazeres sensuais, que são baixos, vulgares, grosseiros, ignóbeis e que não trazem benefício; e a busca da mortificação, que é dolorosa, ignóbil e que não traz benefício. Evitando esses dois extremos o Tathagata despertou para o Caminho do Meio, que faz surgir a visão, que faz surgir a sabedoria, que conduz à paz, ao conhecimento direto, à iluminação, a Nibbana.

“ E qual, bhikkhus, é o caminho do meio para o qual o Tathagata despertou, que faz surgir a visão ... que conduz a Nibbana? É este Nobre Caminho Óctuplo: entendimento correto, pensamento correto, linguagem correta, ação correta, modo de vida correto, esforço correto, atenção plena correta, concentração correta. Esse, bhikkhus, é o caminho do meio para o qual o Tathagata despertou, que faz surgir a visão, que faz surgir a sabedoria, que conduz à paz, ao conhecimento direto, à iluminação, a Nibbana."

e as quatro nobres verdades:

“Agora, bhikkhus, esta é a nobre verdade do sofrimento: nascimento é sofrimento, envelhecimento é sofrimento, enfermidade é sofrimento, morte é sofrimento; tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero são sofrimento; a união com aquilo que é desprazeroso é sofrimento; a separação daquilo que é prazeroso é sofrimento; não obter o que queremos é sofrimento; em resumo, os cinco agregados influenciados pelo apego são sofrimento.

“Agora, bhikkhus, esta é a nobre verdade da origem do sofrimento: é este desejo que conduz a uma renovada existência, acompanhado pela cobiça e pelo prazer, buscando o prazer aqui e ali; isto é, o desejo pelos prazeres sensuais, o desejo por ser/existir, o desejo por não ser/existir.

“Agora, bhikkhus, esta é a nobre verdade da cessação do sofrimento: é o desaparecimento e cessação sem deixar vestígios daquele mesmo desejo, abrir mão, descartar, libertar-se, despegar desse mesmo desejo.

“Agora, bhikkhus, esta é a nobre verdade do caminho que conduz à cessação do sofrimento: é este Nobre Caminho Óctuplo: entendimento correto, pensamento correto, linguagem correta, ação correta, modo de vida correto, esforço correto, atenção plena correta, concentração correta."


continua...


Notas ao rodapé:
1-
Já deu pra perceber que é difícil tratar desse tema no mesmo estilo mais formal que eu gosto...é algo ao mesmo tempo muito e pouco racional...complicado de definir mesmo...

2- Imagem: http://cadernos-da-belgica.blogspot.com/2007/06/buda-detalhe.html