Hoje eu quero me redimir. Primeiramente, pelo fato de não ter atualizado este blog nos últimos três meses. Também, em razão de simplesmente ter esquecido de compartilhar com todos sobre o colóquio internacional sobre o pensamento japonês, promovido pela Fundação Japão nos dias 28 e 29 de novembro, cujas palestras me renderam a maioria dos insights no texto que segue. Encarem tal texto como uma tentativa de partilhar aquilo que lá ouvi, entremeado de minhas confusas considerações pessoais.
*****Quase todo mundo já ouviu falar em haikai, forma poética japonesa cuja norma clássica foi estabelecida por Matsuo Bashô, pseudônimo de Matsuo Munefusa (1644-1694). O genuino haikai se trata de uma poesia em três versos, no esquema 5-7-5 sílabas. Minimalista, não tem rimas nem aparenta recorrer a qualquer tipo de metáfora ou figura de linguagem. Nem título há. Sua temática não remete a sentimentos ou qualquer subjetividade, sempre se falando da natureza. A idéia do poema é justamente transmitir o que se vê. Nada mais.
Existe uma razão profunda para isso, advinda do pensamento zen-budista. Essa corrente de pensamento se vale de diversos
yoku mireba
nazuna hana saku
kakine kana
Se se observar com cuidado
a flor da nazuna floresce
junto à cerca!
A interpretação que se faz desse poema sempre ressalta o fato de que o "olhar com cuidado" implica que o eu-lírico não é mais mero observador, e que a flor ganha consistência e eloqüência em sua própria existência. Trocando em miúdos: sujeito e objeto interagem, e assim o conhecimento se constrói. Trata-se de uma visão do processo cognitivo como comunicação entre o homem e o mundo, e não como apreensão deste por aquele. O homem, que na tradição ocidental desde Platão foge da compreensão originária e direta das coisas pela observação, assume aqui a posição de um centro mole, tão passível de transformações quanto aquilo que ele vê. Quem vê é também visto. Sujeito e objeto são uma e só coisa.
O fato é que o páli e o sânscrito, línguas de que se serviu a doutrina budista, na Índia, e o próprio japonês, embora de forma mais sutil, se utilizam da chamada voz média para expressar essa diluição entre sujeito e objeto.
Em português não existe essa figura da voz média, ao menos como uma categoria separada daquilo que se entende como voz ativa e voz passiva. Tal diferenciação não existe nas línguas latinas e, por conseqüência, não foi estabelecida na gramática moderna do japonês, a qual se baseou nas categorias do latim (daí eu ter dito pouco antes que a presença da voz média do japonês é sutil).
Voltando: a voz ativa expressa a ação exercida pelo sujeito; e a voz passiva, a ação sobre o sujeito. Já a voz média expressará o meio termo ou a ausência dessa relação: a ação do verbo não é exercida por ninguém, nem sobre ninguém; ou é exercida pelo sujeito sobre si próprio - o que chamamos de voz reflexiva. A língua mais próxima de nós que estruturou explicitamente uma voz média foi o grego (é, nem tão próxima assim...). É o caso da forma phainestai (mostrar-se), que deu origem depois à palavra phainomenon (fenômeno). Não à toa, Heidegger tentou se valer de formas mediais para de
Outro exemplo menos obscuro, também do grego, mas que nos remete outra vez ao Bashô e à flor de nazuna, é o dos verbos relativos aos sentidos. A gente não vê a flor, a flor é que se mostra aos nossos olhos. Não que ela esteja conscientemente fazendo isso, é claro, mas em virtude da comunicação do eu com o mundo, como eu havia dito.
O fato é que, no fim das contas, esse pensamento nos leva a uma tautologia boa... nós modificamos o mundo, que também nos modifica... tudo se contamina de tudo, com tudo se misturando. Diante disso, fica até mais fácil compreender o porquê de os gregos e os orientais encararem o mundo de maneira cíclica, enquanto que os ocidentais de mentalidade latinizada (lembre-se que o médium inexiste em latim) só conseguem ver o mundo como uma linearidade (começo-meio-fim). Esse tipo de coisa nos privou daquilo que o oriente considera a forma mais pura de conhecimento: a apreensão imediata, aquele átimo em que os sentidos captaram o ser e ainda não houve tempo para se pensar nisso. Se não se pensou, não houve sujeito, se não se pensou, não houve objeto. Só a confusão de um e outro. Médium. Não penso, logo não existo seria uma afirmação muito mais verdadeira do que a originalmente formulada por Descartes.
Aliás, isso nem é uma idéia tão distante assim da gente. Já diria Alberto Caeiro que:
"O único mistério do universo é o mais e não o menos.
Percebemos demais as cousas - eis o erro, a dúvida.
O que existe transcende para mim o que julgo que existe.
A Realidade é apenas real e não pensada".
Enquanto isso, só me resta concluir que Descartes foi um canalh
Se Apolo perdeu a guerra em Tróia, ganhou todo o mundo moderno de bandeja, com os cumprimentos de Sócrates e Platão.
Notas ao rodapé: 1- Ficou tudo muito confuso. É informação demais, que rendeu viagem demais. Continuamos através dos comentários.
2- A analogia da visão com o conhecimento me fez lembrar que, evolutivamente, a estrutura de percepção da luz é anterior ao cérebro, que se desenvolveu a partir da gradativa aglomeração das células responsáveis pela captação do estímulo luminoso.