sexta-feira, 28 de março de 2008

um pouco de papo furado...

Em Acintita Sutta (algo como "discurso sobre o inconjecturável"), o Buda Xáquia Muni diz que há quatro coisas sobre as quais não se deve perder tempo pensando, pois seria caminho certo para a loucura, a saber: a extensão dos poderes desenvolvidos pelo estado de Buda; a extensão dos poderes no estado de Jhana (resumindo bastante: estado de meditação profunda); a Lei do Carma; e a origem do mundo. Segundo ele, são coisas a respeito das quais não se pode comprovar teorias, e provavelmente um estudo mais sério a respeito poderia ser, além de infrutífero, enlouquecedor.

Por experiência própria, sei que ficar investigando a origem do mundo realmente pode pôr alguém doido. Aliás, a esse respeito ver um post que eu escrevi lá no começo do blog quase, sobre Parmênides... foi ele quem mais me perturbou com suas teorias. No entanto, gostaria de trazer mais alguns questionamentos que, mesmo sendo explicáveis em certo sentido, não deixam de ser fascinantes, porque, afinal de contas, esse mundo é realmente muito estranho e como me foi dito a alguns meses, a natureza não é lógica:

1- A gente aprende na escola que o cerebelo é um cérebro primitivo. Então me respondam: por que ele é responsável pelos movimentos mais refinados do corpo, que provavelmente só se manifestam culturalmente? Quero dizer, o cerebelo é responsável pelo equilíbrio e por movimentos de destreza ou delicadeza. Esses últimos só passaram a ser mais visados quando o homem descobriu a técnica, o instrumento e a arte...ou não?

2- Nós precisamos nos alimentar para viver. No entanto, o metabolismo do alimento oxida nossas células. Curioso, não? Aquilo que fazemos para viver é responsável, ao mesmo tempo, pela nossa morte.

3- Seguindo um pouco pela mesma linha dialética do tópico anterior, a personagem-título do romance Sidarta, de Hermann Hesse, diz a seu amigo Govinda que aprendeu a respeitar todos os seres vivos e não-vivos porque eles contêm em si o germe de Buda e da perdição. Trocando em miudos: considerando o big-bang a origem do universo, você, de alguma forma, já estava lá. Do mesmo modo, você já foi tudo que existe. Tudo isso sem nem sair do lugar, porque se não houver nada além do universo, não há que se falar em referencial no espaço (remeto ao texto sobre Parmênides - Matando o tempo - mais uma vez). Ou seja: você é o todo se diferenciando num desenvolvimento interno. Talvez por isso que, em mais de uma ocasião, eu perdi a noção de individualidade meditando.

É, dá mesmo para ficar meio louco. Assombrado, pelo menos. Como se já não bastasse o mundo visível e seus simpáticos habitantes para nos enlouquecer, ainda procuramos o que está além para nos gerar alguma angústia.

sábado, 22 de março de 2008

(des)Encanto

Semana Santa na televisão é SEMPRE a mesma coisa... filme da Paixão de Cristo, de Moisés, Príncipe do Egito et cetera e tal...

Não que eu ache ruim. Agora mesmo, estou assistindo a um filme sobre Moisés (mais especificamente a cena em que os primogênitos dos egípcios morrem)... Curto a tentativa de reconstituição histórica e cultural da coisa toda. Para alguém que quando mais jovem queria ser arqueólogo (taí um exemplo de como muitas coisas acabam perdendo o encanto com o passar do tempo...essa idéia vai permear todo o texto), todo esse clima de Antigüidade é bastante convidativo.

Mas ultimamente, em relação aos relatos religiosos de um modo geral, tenho refletido mais sobre o fascínio das estórias do que sobre a confirmação da História. Tudo ao mesmo tempo épico e singelo, terno e retumbante.

(opa, Moisés está abrindo o Mar Vermelho agora).

Há um aspecto particular que me encanta e intriga: os deuses eram tão mais próximos de nós antigamente! Falavam conosco, combatiam conosco... alguns até transavam conosco (não que eu me inclua aqui, foi força de expressão). Por que será que, depois da Antigüidade, a atuação de todas as entidades de todos os panteões parece ter se tornado mais discreta?

Credo quia absurdum, dizia Tertuliano. Diante do que se afigurava para nós absurdo, só restava mesmo crer. Hoje a ciência está aí, explicando fenômenos outrora assombrosos (agorinha mesmo, Moisés tirou água da pedra), não deixando muito lugar para divindades, santos e mitos no coração das pessoas.

Por amor à filologia e ao meu último post, quando eu criticava a mania de citações, tenho que fazer um parêntese aqui: Tertuliano nunca disse essa frase. O texto original dizia credibile est, quia ineptum est (De carne Christi 5.4); e dizia respeito, como sugere o título da obra, à polêmica presente nos primeiros tempos do Cristianismo, a saber: seria Cristo feito de carne como nós ou uma presença imaterial? (à primeira vista ambas as frases têm idêntico sentido, e o tema cabalístico demais para desenvolver aqui, portanto remeto o leitor de uma vez por todas para http://www.tertullian.org/articles/sider_credo.htm ).

Voltando. A ciência ultimamente tem se "intrometido" muito na seara da religião, que a meu ver não tem que ter tanto compromisso com racionalidade. Pelo menos não por si. Mas o raciocínio que se propõe lógico, científico e irrefutável está sempre visitando o campo da religião. Às vezes, isso acontece por convite da própria religião, como se deu com a adaptação do aristotelismo ao catolicismo (influência inexistente entre os cristãos orientais) ou, para pensar num exemplo mais afastado de nossa realidade, com o Budismo indiano, que através dos tratados do Abhidhamma Pitaka pretende descrever o conjunto de todas as sensações possíveis através do cruzamento de séries de categorias fundamentais, ou seja, conferindo lógica a Maya (o mundo visível) por meio de permutações.

É, parece que o homem está mesmo disposto a trocar a sarça ardente do deserto pela árvore de possibilidades da matemática (diga-se, aliás, que no colégio esta me parecia muito mais árida).

Outras vezes, a ciência faz suas incursões à revelia da religião. Desde as bizarrices - nem tão bizarras assim - do v. Däniken, que corre o mundo tentando provar que os deuses na verdade eram astronautas, até os cientistas que atribuíram as pragas do Egito a um desequilíbrio ambiental, passando por muito mais coisas que soam um tanto desnecessárias.

Justiça seja feita, muitas vezes a reação da religião diante da ciência é desproporcional e tola (Galileu e células-tronco são casos paradigmáticos).

Não penso, entretanto, que tudo se resuma a uma treta de foice entre a fé e o ceticismo do progresso da ciência, por mais que estejamos vivendo uma nova revolução tecnológica, a passos muito mais largos do que as anteriores, e quase ninguém se dê conta disso.

Talvez seja o homem que se desencantou. Faz alguns milênios que trocamos as florestas pela civilização, novos espaços foram se diferenciando desde então (política, economia e mesmo família...campos que antes caminhavam junto da religião) e isolando o espaço do fantástico. Nos afastamos da natureza e, conseqüentemente, do divino. Quer coisa mais discrepante do que procissão de domingo de Ramos no centro de São Paulo? A esse respeito, vale lembrar que existem estudos muito interessantes - sim, científicos - sobre a correlação entre a diversidade do ecossistema e a pluralidade de entidades duma religião (o que ajudaria a entender o porquê de os povos do monótono deserto tenderem à monolatria enquanto que os gregos tinham aquela multidão de deuses...).

É isso. Talvez eu esteja me encaminhando para conclusões um tanto românticas e idealistas, motivo pelo qual fico por aqui.

Oxalá um pagão ainda eu fosse,
Por velhas ilusões acalentado.
A paisagem seria bem mais doce
E o mundo muito menos desolado

William Wordsworth, poeta inglês (1770-1850).

(E Moisés acaba de receber as tábuas da Lei).

domingo, 2 de março de 2008

Com o ouvido no rádio

Hoje eu gostaria de fazer algo diferente: comentar notícias. Nada grandioso como a independência do Kosovo (cuja pronúncia correta descobri ser "Kosôvo"...falta saber se o s tem som de z ou ç) ou o estardalhaço do Chávez posicionando tanques na fronteira com a Colômbia...nem a "renúncia" de Fidel e do Putin, nada disso (nossa, tem muita coisa acontecendo mesmo...).

Certa vez eu estava ouvindo a CBN e o repórter comentava sobre a quantidade absurda de citações erradas que os parlamentares têm feito em seus discursos em Brasília. Eu já havia lido algo a respeito numa dessas Vejas que infestam as salas de espera desse mundão nosso ("velho, esse cara deve ter esperado um bocado" é o que você deve estar pensando... ah, a propósito dessa revista pavorosa, vai vendo: http://www.projetobr.com.br/web/blog/5#6304 ) e é realmente intrigante a capacidade dos caras de desencavar pérolas de Os Sertões ou transformar linhas do Bobbio em frases de efeito para se safar nas votações pela cassação, entre tantas outras papagaiadas. Capacidade intrigante, mas não tão estranha - pelo menos a mim -, já que o que mais há no mundo jurídico é o festival das citações.

De qualquer modo, creio que seria de bom tom que todos nós - políticos, juristas, jornalistas, escritores, estudantes e toda sorte de (des)ocupados - tenhamos o mínimo de responsabilidade antes de sair por aí citando autores quando muitas vezes eles: a) não disseram a frase que atribuímos a eles; b) se disseram, não foi exatamente daquele jeito; ou c) se foram eles que disseram, e daquela exata maneira, provavelmente o contexto é que não tem nada a ver.

Se nós tivéssemos esse cuidado, impediriamos que tantos caras do naipe de Shakespeare ("Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa [??] filosofia"), Nietzsche (frases como "O Evangelho morreu na cruz" ou "O que não me mata me fortalece" seeempre perfeitamente contextualizadas) ou Fernando Pessoa ("Navegar é preciso, viver não é preciso") e Cnaeus Pompeius Magnus (que foi quem realmente disse o célebre "navigare necesse, vivere non necesse" atribuído a Pessoa, muito embora tenha morrido uns bons mil e novecentos anos antes do escritor português nascer) façam par com aquele indivíduo desconhecido citado ironicamente por Nelson Rodrigues em O óbvio ululante: "Tudo é memória, disse não sei quem".

§§§

Outra da CBN: Comentário do Dimenstein. Para quem não sabe, ele fala na rádio sobre capital humano, educação e coisas afins. Acho muito bacana, embora dessa vez eu deva ressalvar o que, na minha opinião, é uma avaliação simplista. Ele contava sobre um projeto de lei aqui em São Paulo que institui uma premiação para professores e funcionários de escolas cujos alunos apresentassem bons índices (um plus no salário no fim do ano, se não me engano). O legal dessa iniciativa, segundo ele - e aqui eu concordo - é que todos os responsáveis pelo colégio receberiam essa gratificação (desde o faxineiro até o diretor). Sim, é louvável. Só que daí o comentarista fecha com algo do tipo "assim, aqueles que se esforçam mais são recompensados e os que não se esforçam tanto deixam de ganhar um pouco mais" (faz um tempo que eu ouvi isso, espero não cometer o pecado da citação que eu criticava há pouco).

Francamente. Creio que não foi essa a idéia que ele realmente quis passar, mas isso está mais para papo de economia do que de política educacional. "Ah, você vê o esforço dos docentes e funcionários e compara com os resultados dos alunos ceteris paribus e zaz". Quero dizer, eu penso que não adianta falar em desmotivação por parte daqueles que trabalham nas escolas paulistanas se de repente as contingências do meio não colaboram para que haja um aprendizado saudável ou mesmo condições de trabalho adequadas...miséria, descaso, criminalidade. Sem comentários.


Nota ao rodapé:

1- Confesso que eu mesmo só fui confirmar que a frase não era de Fernando Pessoa nas aulas de latim na faculdade. Aliás, citando (er...) certo franciscano jocoso: Ave Darci, morituri te salutant! Bons tempos de calouro.
2- "Mas que m... é essa de ceteris paribus?" pergunta você. É isso aqui, respondo eu: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ceteris_paribus ... vinda diretamente das aulas de econometria com o livro do Mankiw, mas essa já não é uma das minhas melhores lembranças de calouro.